Capítulo 15

65 6 0
                                    

que resta de minha irmã em breve não existirá mais', pensou Valerie enquanto descia o caminho em declive para o rio. Era fim O de tarde agora, e Cesaire segurava uma das extremidades da jangada estreita com o corpo de Lucie; Valerie e Suzette seguravam a outra. Chegaram à margem, onde a terra era muito mole e se parecia com cinzas escondidas sob a neve. Ligeiramente, marcas suaves de pés e patas que precederam as deles foram espalhadas.
Eles viram que os Lazar — o que restava deles — estavam lá, mantendo a vigília do corpo de Adrien, deitado em sua própria jangada. A senhora Lazar estava totalmente ereta; era como se a idosa mulher se recusasse t se curvar. Henry estava atrás dela.
Ambos fizeram ligeira reverência quando Valerie e sua família se aproximaram. Henry ergueu as sobrancelhas para Valerie, desculpando-se em silêncio pela maneira como agira na forja. Colocaram a jangada de Lucie ao lado da de Adrien. Tal visão fez Valerie olhar para a mãe, mas Suzette estava perdida em sua dupla dor muda.
Cesaire se agachou e começou a preparar as duas tochas: produziu faíscas com o sílex e avaliou o rio.
Valerie não pôde deixar de sentir quanto a tristeza de seu pai era insuportável. Ela ficou para trás, perto do bosque. Uma árvore enorme havia sido derrubada na ventania da noite anterior, e suas raízes voltadas para cima agarravam o ar em busca de seu solo perdido.
Cesaire ergueu o olhar; as tochas estavam prontas.
Henry desceu a ribanceira irregular e recebeu a tocha. Antes que pudesse pensar demais a respeito, ele a lançou sobre a jangada de Adrien e empurrou o caixão flutuante no rio, que ondulava como seda cor de fumaça. Seu vaivém batia sempre nos mesmos sulcos e reentrâncias, de modo que ele parecia estar em um momento exatamente igual ao próximo.
Parecia que a água não se movimentava. Ela apagaria as chamas, mas somente depois que o fogo já tivesse consumido o que fora convocado para fazer.
Henry foi até a Avó quando as chamas tomaram conta da jangada; ficou ao seu lado, rolando uma pedra para trás e para frente com o pé. A senhora Lazar cerrou as pálpebras como se fossem cortinas, e Valerie pôde ver suas lágrimas ameaçando transbordar. Por um instante, ela era apenas uma mãe que amava o filho.
Valerie sentiu que vislumbrava o coração pétreo da mulher idosa.
Valerie não conseguia imaginar a senhora Lazar como uma jovem, dependente de outra pessoa. Era difícil acreditar que ela compartilhava necessidades tão humanas quanto dormir ou comer. E, no entanto, a mulher não ira tão ruim assim. Valerie, que havia explorado todos os lugares, sabia que, secretamente, a mulher deixava tigelas de leite para cães vadios.
Em meio à névoa da tristeza, os cinco enlutados ouviram o som de pés se arrastando sobre os seixos. Era Claude que viera prestar suas homenagens a Lucie. Vendo o olhar de Valerie, desceu o barranco. Lidava com aquilo da melhor maneira que podia. Claude acreditava em muita coisa; mesmo assim, antes daquele dia, não acreditava no mal. Fora preciso ver Lucie morta no campo de trigo para convencê-lo.
O mal estava por toda parte.
A senhora Lazar fungou e se afastou do intruso, mas Valerie ofereceu a Claude um sorriso discreto. Ela não se importava por ele ter vindo se juntar à família em seu sofrimento.
Cesaire, vendo que a jangada de Adrien estava bem longe no rio, adiantou-se. Valerie balançou a cabeça. Só mais um momento.
Observou a irmã pela última vez — sua carne, aqueles pés pequenos que não pareciam prontos para desaparecer para sempre. Olhou e tentou dizer adeus.
Mas dizer adeus não era fácil.
Suzette aproximou-se da jangada, tremendo as lágrimas. As mães não deveriam viver mais que seis filhos', pensou Valerie. A natureza deveria ter uma contra isso'.
Buscando primeiro por permissão, Cesaire tocou a tocha na borda da jangada. Assim que o fogo pegou, ele entregou ao rio.
Suzette andou sem rumo atrás dele — longe o suficiente para ficar claro que eles não estavam sofrendo separadamente, mas tampouco juntos.
Valerie sentiu um toque e virou-se instintivamente para o peito de Henry. Um local calmo. Sentiu um braço à sua volta e percebeu que estava chorando e molhando a gola de couro dele com suas lágrimas.
Quando voltou olhar, a senhora Lazar havia desaparecido.
Quando as chamas diminuíram de encontro ao rio Valerie afastou-se do abrigo do corpo de Henry. Não queria ir até a mãe, nem sentia que deveria ir até o pai. Então caminhou pela margem do rio; a superfície era marmorizada como uma massa não misturada. Agora, sua irmã era água — fria e límpida. Encontrou um lugar onde o rio batia suavemente na margem, onde algumas plantas se erguiam em meio à neve. Como era possível que as plantas ainda crescessem? Ela se sentou, deixando a correnteza fria e cortante bater nela enquanto corria sobre seus pés, lavando-os, até que Claude a chamou; o vento levava a sua voz.
Voltando-se, viu sua mãe observando as duas jangadas, perguntando-se por que ela não havia sido levada também.
Lucie partira — agora não havia nenhuma dúvida sobre isso.
Valerie e os pais caminharam juntos para casa, seguindo a fila de árvores escuras ao longo da muralha da aldeia. Entrando por uma barricada reforçada, passaram sob os olhares implacáveis dos soldados de Father Solomon, que patrulhavam a cavalo. Os soldados comiam enquanto observavam com as armas penduradas em seus corpos. Com o canto da boca, davam mordidas em enormes filões de pão ou viravam canecas de cerveja em dois grandes goles — mas não tiraram os olhos da família.
A barricada recém-erguida era assustadora; ela significava que agora o mundo era apenas a aldeia contra o Lobo. Porém, ela assustava Valerie por um motivo que tinha medo de admitir até para si mesma.
A barricada significava que ficaria presa lá dentro.
Para ela, nem importava quem o Lobo era, percebeu em um momento de lucidez. O que importava era que havia um lado de fora, e que ela não fazia parte dele. Sentiu como se estivesse descendo ao fundo de um poço e que alguém no topo estivesse fechando a tampa.
Através da escuridão, a família de três membros ouviu um barulho ensurdecedor, e então algo saltou dos arbustos até eles, surreal e aterrorizador.
Era um lobo com cara de homem.
 

A Garota Da Capa Vermelha Onde histórias criam vida. Descubra agora