Capítulo 18

69 2 1
                                    


le seguia duas figuras. Figuras humanas. Vulneráveis.
— Claude — uma delas choramingou, mal capaz de pronunciar E uma palavra.
Ridículo.
Mas um gemido ridículo ecoa alto nos ouvidos de um predador.
Isso e as batidas do coração de uma garota.

***

Movimentando-se pelos destroços, com os olhos ardendo pela fumaça, Valerie se sentiu isolada, separada dos acontecimentos que ela acabara de testemunhar como se estivesse atrás de uma parede de vidro. Perguntou-se vagamente por que ela não estava entre os mortos. Por que ela não estava apavorada até os ossos como Roxanne, que tremia ao seu lado?
— Claude! — Roxanne chamou novamente, sua voz em pânico. — Cadê você?
Roxanne sabia que era melhor não confiar em sua mãe para se preocupar com Claude. Mas ela e Valerie não haviam encontrado seu irmão entre os aldeões encolhidos, que se apertavam como sardinhas na igreja. Viram seus pais e os perderam com a mesma rapidez enquanto seguiam seu caminho.
Até agora, não haviam encontrado Claude entre os mortos.
Até agora.
Tampouco Valerie encontrara Peter. Ela queria chamar por ele também, mas Daggorhorn era uma cidade que se alimentava do escândalo.
Assim, mesmo em meio à tragédia, ela guardou o segredo.
Havia outra coisa que a impedia de chamá-lo. Uma suspeita que começara a crescer dentro dela, com a qual até agora sua mente apenas havia flertado, recusando-se a abraçá-la. Tudo isso havia começado quando Peter chegara... Tinha que ser uma coincidência...
Ela sentiu um movimento por perto e olhou ao redor cuidadosamente, sem querer alarmar Roxanne. Mas mesmo isso foi o suficiente.
— O quê? Aconteceu alguma coisa?
— Não. Não é nada.
Colocou uma mão reconfortante no braço de sua amiga enquanto pensava em seu próximo passo.
— Por aqui — falou, guiando Roxanne para o Beco dos Tintureiros.

***

Quando o Lobo seguiu as figuras ao virar a esquina, o odor pungente de corante interferiu no cheiro de medo de uma das garotas.
Mas e a outra garota?
Como é estranho perseguir alguém que não exala terror.

***

Valerie pensou em Lucie. Aquele era um lugar de que elas sempre gostaram, um estreito caminho mágico com um tapete de pétalas caídas ao redor das cubas de corante como flocos caídos de um céu crepuscular.
Valerie crescera indo lá, sempre desesperada para enfiar os pés empoeirados dentro delas ou roçar as mãos ao longo da superfície da convidativa água azul adormecida. Ela havia leito isso uma vez, mas Lucie, a menina grande, a pegara em flagrante, puxando a palma da mão azulada para fora da cuba comprida e rasa. Para fazer as pazes, Lucie roubara um punhado de flores das torres de armazenamento e tecera-as com cuidado no cabelo de Valerie naquela noite.
Se ao menos as flores vivessem eternamente.
Se ao menos as irmãs também vivessem eternamente.
Algo assustou Roxanne, que soltou um grito, inclinando-se para frente. Valerie agarrou seu pulso, puxando-a para trás da borda de um tonel de tinta azul, brilhando como uma granada brilhante ao luar.
— Cuidado!
Um barulho ecoou atrás delas. Viraram-se; o coração de Valerie estava suspenso no peito, como no momento que antecede a queda livre.
O Lobo surgiu através da fumaça. Voraz, rosnando, mostrando seus dentes de adaga cobertos de sangue.
Valerie girou para trás, puxando Roxanne, congelada, junto com ela.
As duas correram; os pés lançavam um jato de pétalas pelo caminho.
Mas o beco chegou ao fim. Não havia saída. Valerie se maldisse por não ter pensado nisso. Havia apenas a parede das torres de armazenamento cheias de flores picadas para a tintura. Uma escada de estacas foi cravada na madeira. Valerie saltou, agarrando-se a uma delas e s alçando para cima. Olhou para baixo: o Lobo não estava à vista. Talvez houvesse perdido o interesse.
Mas Roxanne estava paralisada. Valerie se abaixou.
— Segure a minha mão!
— Não consigo.
— Vamos!
Mas Roxanne não se mexeu. Valerie soltou a estaca, aterrissou ao lado de Roxanne, pronta para sacudi-la de seu torpor — mas então o Lobo saltou diante de Valerie.
Era enorme, tão grande que estava em toda parte, mais alto que qualquer homem que já caminhara sobre a terra. Esse era o mal que havia cravado os dentes na carne de sua irmã. Valerie sentiu sua coragem se contrair em pânico.
Mas ela não conseguia desviar o olhar do ouro flamejante dos olhos do Lobo.
O Lobo não piscou enquanto eles respiravam em uníssono.
O mundo silenciou. Então Valerie ouviu uma voz intrincada, uma mistura entremeada de sons tanto masculinos quanto femininos, humanos e animais. Um composto de cada voz que ela já conhecera, que vibrava profundamente dentro dela. A voz do Diabo.
— Você achou que conseguiria fugir de mim?
Valerie sentiu o céu girar e a terra ceder.
— O quê...? — ela respondeu. — Você fala?
— Tudo o que importa é que você me entende.
Valerie sentiu a doçura espessa das flores se misturando com o rosnado almiscarado do Lobo.
— Você sabe o meu nome — ela afirmou, — O que você está fazendo? — perguntou Roxanne a Valerie, com a voz trêmula.
O Lobo virou-se para Roxanne, rosnando até as pernas dela cederem, e ela desabou em um monte silencioso no chão, O Lobo, desinteressado do destino de Roxanne, voltou seus olhos para Valerie. A voz do demônio surgiu novamente, preenchendo sua mente, seu corpo.
— Nós somos iguais, você e eu.
— Não — Valerie foi rápida, sua própria alma rejeitando a ideia. Não.
Você é um assassino. Um monstro. Eu não sou nem um pouco como você.
Ela estendeu as mãos para trás de si, tateando as cegas por algo para agarrar. Não encontrou nada.
— Você também matou. Eu conheço os seus segredos.
Valerie sentiu sua respiração fluir novamente pelo seu corpo, mesclando-se com a pulsação que martelava em seu peito. O que o Lobo disse aterrissou em um lugar mais profundo que a audição.
— Você é uma caçadora — o Lobo continuou, escarnecendo dela. — Posso sentir isso em você, mesmo agora.
Valerie não pôde deixar de imaginar o que o Lobo teria dito a Lucie.
Seus pensamentos explodiram de só vez, paralisando-a.
O Lobo se aproximou. Valerie estudou aqueles grandiosos olhos amarelos.
— Que... olhos... grandes... você... tem... — ela disse, com a voz fraca.
— São para te ver melhor, minha querida.
Hipnotizada pela intensidade daquele olhar incrível, Valerie não conseguiu desviar o olhar do horror que aconteceu em seguida. A pele de cada lado do rosto do Lobo se separou e fendeu em um ímpio desabrochar para revelar... um segundo par de olhos.
Um par de olhos mais impressionante que o primeiro. Sensível e inteligente. Onisciente.
Humano.
Antes que Valerie pudesse reagir, o Lobo falou suavemente; sua cauda enorme espanava a poeira de um Iado a outro.
— Eu vejo o que está no seu coração. — Seus lábios de carvão, molhados, eram roxos de tão negros, e os dentes escarpados eram espaçados em linhas irregulares; havia apenas escuridão no lugar onde alguns faltavam ou estavam desalinhados. — Você quer escapar de Daggorhorn. Você deseja a liberdade.
Por um momento, Valerie pensou como um lobo. Ela descobriu que conseguia.
Sentiu como seria correr livre, cruzar uma floresta escura com o sangue desperto, espreitar durante a caça. Ter uma vida livre do medo, de laços ou compromissos. Fazer o que quisesse, descompromissada de um lugar fixo, livre para escapar de uma vida de inseto, em constante vaivém dentro do mesmo raio minúsculo. Ela sentiu a visão dessa nova vida se apoderando dela, cortando suas conexões com o presente.
— Não... — ela tentou dizer.
Mas o Lobo, com aqueles olhos, viu que havia tocado em algo, em uma verdade.
— Venha comigo — disse. Valerie hesitou, e o Lobo preencheu o espaço do silêncio. — Venha comigo — repetiu.
Eu já ouvi isso antes.
Em a algum lugar à distância, houve gritos, o clamor dos soldados, dos soldados, o tilintar das armaduras. O barulho a ajudou a clarear a mente.
— O Father Solomon vai detê-lo — Valerie ouviu enquanto falava.
Como uma garotinha desamparada, sozinha, cobrindo o rosto à espera de alguém aparecer para melhorar as coisas.
O Lobo endireitou-se em toda a sua altura, estirando as espáduas para trás. Sua sombra caiu sobre os rostos das duas meninas.
— Father Solomon não sabe com o que esta lidando.
O Lobo adotou um novo tom.
— Venha comigo ou vou matar todos aqueles que você ama.
Valerie tremeu com o peso do que ele pedia que ela fizesse; como poderia escolher?
As orelhas do Lobo se movimentaram para trás com impaciência.
— Começando por sua amiga aqui.
Ela deu uma investida na direção de Roxanne, estalando sua mandíbula colossal.
De forma inacreditável, naquele exato momento duas figuras apareceram das sombras. O arqueiro mascarado já abria fogo sobre o Lobo precisamente quando ele e Solomon dobravam a esquina do beco.
— Eu voltarei por você — O Lobo se inclinou para Valerie. — Antes de a lua de sangue minguar.
Quando o Lobo se içou por sobre o muro, Solomon pegou a besta e disparou uma rajada de flechas; entretanto, o Lobo já havia desaparecido na noite.
Solomon escalou atrás dele, mas não conseguiu chegar até o topo do muro. Atirava e recarregava, atirava e recarregava, sem tirar os olhos do Lobo enquanto o animal desaparecia ao longe.
Tremendo com o esforço de controlar sua força e sua ira, Solomon pulou como um gato de volta ao chão. Valerie viu que seu rosto estava negro, vermelho r amarelo, como diferentes velas derretidas juntas. Ele estendeu a mão para sentir o corante nas cubas, trazendo uma concha para o rosto, sentindo o seu aroma. Deixou o liquido verter e sacudiu a água de suas mãos.
Solomon principiou a levar as meninas para a igreja, mas quando passaram pela praça, onde a fogueira fora reduzida a apenas brasa, ele foi interceptado por uma mulher em pânico.
— Deus nos salve!
— Deus salvara apenas aqueles que ganharam o seu amor pela fé e pela ação — respondeu, olhando além deles na direção em que o Lobo havia ido. Ele fez Valerie se lembrar de uma vespa: um comandante de olhos rápidos, zumbindo com a vaidade ferida.
Ela se lembrou de Roxanne e olhou para ela. Ela roía o polegar. Toda a cor havia deixado o seu rosto, fazendo suas sardas se destacarem como as manchas que pontilham um ovo de tordo.
O capitão falou em outro idioma com um sol no portal da igreja, mergulhando sua voz em tons mais graves. Parou para escoltá-las até o adro. A imagem subia o portal, de Cristo como um caçador enfiando um punha no peito de um lobo, deu calafrios em Valerie.
— Aqui vocês terão garantia de segurança. — O capitão mudou de idioma, fluente de novo em inglês.
— Mas o meu irmão! Eu tenho de encontrá-lo —. Roxanne protestou.
— Se ele está vivo, você o encontrará lá dentro.
— Espere! — ela gritou; mas ele já havia fechado o pesado portal de ferro atrás delas.
Valerie olhou para a amiga com pena. Ela também estava preocupada com o paradeiro de Peter.
— Tenho certeza de que ele está seguro, Roxanne. Ele sabe se defender.
Roxanne a encarou de volta como se ela fosse urna estranha.
— Você falou com o Lobo — sussurrou Roxanne em tom acusador, com a voz fina entrecortada pelo medo.
— Eu tinha de falar. Ele falou conosco. — Valerie pensou que a amiga concordava com ela.
— Não — Roxanne corrigiu. — Ele rosnou para nós... O medo nos olhos dela assumiu novas profundidades. — Você o ouviu falar com você?
Valerie então percebeu a magnitude do que havia acontecido.
Roxanne não ouvira uma palavra. Só ela. Em uma cidade como esta, o risco de alguém saber que ela possuía essa capacidade era monumental.
Olhou ao redor para ver se alguém estava ouvindo.
Ela pensou nos boatos que proliferariam se alguém soubesse. Então, lançou esses mesmos olhares e sussurros sobre si mesma. Por que o Lobo havia falado com ela? Por que Roxanne também não entendera? Valerie se sentiu claustrofóbica em sua própria pele.
— Eles me chamarão de bruxa. Não conte a ninguém — implorou, com a voz áspera.
Roxanne lançou-lhes um olhar. Ela parecia aceitar o medo de Valerie como um reconhecimento de seu próprio medo.
— Claro que não. É óbvio.
Valerie se sentiu grata por Roxanne não ser o tipo de garota que pensaria em perguntar o que o Lobo havia dito.
Deu uma olhada em sua amiga, que andava em direção ao portal da igreja com seu rosto pálido a olhar obstinadamente adiante. Ela se parecia exatamente como uma garota que havia sido perseguida por um lobisomem deveria parecer. Mais uma vez, Valerie se perguntou por que ela mesma não estava mais traumatizada. Tudo parecia tão... natural, como se essa fosse a ordem das coisas.
Ao olhar para Roxanne, Valerie viu uma gota de sangue cair, e depois outra.
Roxanne tocou o rosto e sentiu a umidade abaixo do nariz. Depois de toda a carnificina que havia visto, era apenas um simples sangramento no nariz.
Roxanne sacudiu a cabeça e entrou na igreja. Valerie observou a amiga; em seguida, ergueu o rosto para o céu. Urna revelação atingiu Valerie quando ficou sozinha olhando para a torre da igreja. Aqueles olhos segundo par de olhos, que o Lobo lhe revelara.
Eles eram familiares.
 
Parte
 

A Garota Da Capa Vermelha Onde histórias criam vida. Descubra agora