Capítulo 19

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alerie acordou de madrugada com um gosto amargo na língua, como se fosse ferrugem. Embaraçada, olhou ao redor. Sonhara V com Peter e com suas carícias. Entretanto, a imagem em sua mente tornou-se desagradável quando se lembrou da carnificina.
Onde ele está?
Valerie afastou o pensamento e se levantou do duro banco da igreja para alongar as costas. A porta do abrigo estava escancarada. Uma neblina envolvera Daggorhorn como uma cortina de gaze que dava ao vilarejo uma aparência descolorida e desolada.
O Capitão abrira o portão do pátio da igreja. Ao passar por ele, viu alguns homens recolhendo os restos carbonizados e ensanguentados que juncavam a praça.
Com exceção do som das pás arranhando o solo gelado, tudo estava em silêncio. A neblina se infiltrava em um labirinto de árvores, O ar estava abafado, e as pessoas, nervosas.
Ela avistou Henry atravessando a praça, mas ele não pareceu enxergá-la. Talvez estivesse envergonhado pelo modo como se comportara no festival. Quase o chamou, mas se conteve ao pensar nos seguintes e nas mãos de Peter sobre seu corpo. Mal sabia ele que era ela quem deveria se sentir envergonhada.
Ouviu o martelar de cascos, e o cavalo de Solomon surgiu à sua frente.
Com as patas envoltas pela névoa baixa, parecia flutuar. Seu cavaleiro, com o rosto enegrecido e ensanguentado, fez alto e observou o massacre.
Usava uma longa túnica bordada nos ombros. Enquanto ela o olhava, ele segurou uma de suas luvas entre os dentes e a arrancou da mão. Valerie ficou espantada ao ver que suas unhas, com as cutículas cuidadosamente removidas eram laminadas com prata e afiadas como adagas. Tinha um brilho fosco e limpo.
Suspendendo a bainha da batina, Father Auguste se apressou para ir ao encontro do homem mais velho. Father Solomon olhou-o de cima, sem se dar ao trabalho de esconder o desprezo.
- Peço desculpas - disse Auguste com voz meu flua. - Jamais deveríamos ter duvidado de você. Nunca mais cometeremos esse erro.
Os aldeões que haviam se reunido em torno ficaram aguardando a reação de Father Solomon. De agora em diante, decidiram em silêncio, vamos depositar nossas esperanças nele.
Father Solomon desmontou do cavalo e começou a caminhar lenta e resolutamente, sabendo que os olhares de toda a aldeia estavam cravados nele.
- Nunca vi um bicho tão forte quanto esse. A maldição é hereditária, e cada geração é mais potente que a anterior. Porém, nunca vira um espécime de linhagem tão longa. Agora, já não quero só matar essa fera.
Não quer matar a fera?
- Não mais. Agora, quero fazer esse bicho sofrer.
Aproximou-se do corpo do Bailio, caído perto da mesa de banquetes que fora tombada.
- Espero que ele tenha aproveitado a comemoração - disse, chutando levemente a neve ao lado do homem. O corpo parecia tão sem vida em meio aos destroços que ninguém se mexeu. Todos tinham certeza de que o Bailio não sentira nada, que já havia partido há muito tempo e nada mais restava dele naquele solo desolado e endurecido pelo gelo.
Solomon avistou o Capitão que, debruçado sobre o corpo do irmão, segurava uma de suas pernas como se fosse um bebê. Tendões horripilantes despontavam no local da amputação. O corpo estava intumescido, como se os músculos estivessem pressionando a pele.
Solomon se aproximou.
- Um homem mordido - disse ao Capitão, com uma expressão pétrea - é um homem amaldiçoado.
Enquanto Valerie observava tudo chocada, Solomon sacou a espada e a mergulhou no peito do homem. O Capitão fechou os olhos e, quando os reabriu, tinha um olhar endurecido. Largando a perna do irmão, virou o rosto para outro lado.
Inabalável, Solomon se dirigiu à multidão.
- Cidadãos de Daggorhorn - disse em voz firme.
- Chegou a hora de sermos sérios.
Os aldeões gostaram de seu tom autoritário; queriam que alguém lhes oferecesse um plano. Estavam impressionados com o que acabaram de presenciar; o irmão do Capitão, ao morrer, havia se tornado uma ameaça à segurança de todos, e Father Solomon lidara com o assunto de forma rápida e fria.
- Não haverá mais celebrações - Solomon se inclinou e recolheu uma máscara de porco caída na neve - até que o lobisomem seja descoberto em sua forma humana. E destruído. Da maneira que for necessária.
Ele largou a máscara. Seus homens reuniram-se ao seu redor. Desta vez, não esconderam as armas.
- Pode ser qualquer um de vocês. Por isso, vamos procurar em toda parte. Os sinais são sutis: isolamento feitiçaria, magia negra, perfumes estranhos... Suas casas serão vasculhadas. Seus segredos serão trazidos à luz. Se você for inocente, não tem nada a temer. Mas se for culpado, juro pelos meus filhos que você será destruído.
Solomon notou que os aldeões estavam olhando para os soldados e suas armas.
- Minha esposa morreu. Os pais, os filhos e as filhas de vocês morreram. Alguns de nós temos que permanecer vivos para cultivar a memória deles - disse, abrindo caminho em meio aos detritos remanescentes da noite anterior.
Houve murmúrios e enfáticos acenos com a cabeça enquanto os aldeões observavam seus vizinhos, amigos, maridos, esposa e filhos. Valerie sentiu uma estranha necessidade de falar, mas não conseguiu fazê-lo.
Sentia-se pouco à vontade ao ver como seus vizinhos estavam dispostos a obedecer àquela nova autoridade.
Seu estômago rangeu como uma porta, e ela percebeu que se esquecera de comer. Deixou então a multidão se encaminhar para casa, feliz por ter um motivo para não continuar escutando.

***

O pai e mãe de Valerie estavam em casa, mas ela só viu a mãe. Deitada na cama, Suzette parecia pequena e magia. Sua pele estava frouxa, meio que desajustada, como tivesse comprado um rosto de número maior que o dela. Uma fina camada de suor cobria seu peito e pescoço e seus cabelos estavam desgrenhados. Deitada na cama, parecia pequena sob o acolchoado leito pela avó.

Seu rosto fora cortado pelo Lobo.
O sangue secara, formando uma grossa casca sobre a bochecha, tornando impossível avaliar a extensão do ferimento.
Cesaire levantou os olhos quando Valerie entrou e a puxou na sua direção. Depois, foi vigiar a água que começava a fever na lareira enquanto a Avó segurava a mão de sua neta.
Observando o pai, Valerie se deixou levar por pensamentos de outros tempos.
Nós sabíamos que íamos tomar banho quando víamos quatro panelas de água sobre o fogo. Minha mãe tirava o vestido por sobre a cabeça, desmanchando a cabelo. Seu corpo era bonito; eu sabia disso mesmo sendo pequena. Brilhava como se houvesse algo de mágico sob sua pele.
Ela nos banhava primeiro, nos levantando pelos sovacos e nos colocando gentilmente dentro da água morna. Depois, entrava na tina devagar, tomando cuidada para que suas pernas não batessem em nós. Minha irmã ficava sempre mais perto dela, e eu tinha a impressão de que não fazia parte do núcleo que elas formavam.
Nós, garotas, nos revezávamos para mergulhar a cabeças na água.
Quando chegava a minha vez, eu balançava a cabeça para frente e para trás, para frente e para trás, e me sentia como uma sereia.
Esses tempos haviam desaparecido. Valerie receou que sua mente descartasse a imagem da irmã num mecanismo de defesa que não desejava acolher. As lembrança estão sempre se deteriorando. Tinha já tantas que desejava parar de criar lembranças novas; já havia muitas experiências a avaliar. Mas novas lembranças se formavam a cada momento.
Ela olhou para o que restara.
Seu pai cuidava da esposa, trazendo trapos quentes e úmidos para passar em seu rosto. Seria ternura? Valerie gostaria de saber. Uma encenação para a Avó? O Lucie tinha razão? Seria amor?
Ela viu Cesaire pousar os olhos no corpo reclinado de Suzete.
Perguntou-se então se ele realmente ainda a via. Após dezoito anos de casamento, ele não parecia notar a gentileza com que ela tratava os filhos ou seus cabelos dourados pelo sol nos meses de verão. Seria isso o casamento, uma incapacidade para perceber quem a pessoa é, assim como não conhecemos a nós mesmos por estarmos próximos demais? Seria isso o que a esperava com Henry? Com Peter?
Valerie sabia que seus pais haviam vivenciado os mesmos traumas e tragédias. Mas não os haviam enfrentado juntos, e sim separadamente.
Talvez sentindo o escrutínio da filha, Suzette fez um movimento com a mão, derrubando a bacia de metal, que retiniu no chão. Enquanto Valerie se abaixava para apanhá-la, sua mãe continuou a gemer.
Lembrando-se da história de Solomon, Valerie repassou os detalhes da noite anterior: ela vira mesmo o Lobo ser cortado? Onde estivera sua mãe?
Minha mãe seria o Lobo? Valerie não conseguia suportar este pensamento. Assim, quando a Avó a empurrou delicadamente na direção de Suzette, ela se aproximou do leito sem hesitar.

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