A garota da Cafeteria

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        Domingo

      — Bem vindos ao Circulo da Harmonia, aqui compartilharemos todas as nossas frustrações, vontades, culpas e desejos. Alguém quer começar? - diz Phill, o terapeuta do nosso grupo. Ele é alto e gordinho, cabelos só aos lados da cabeça, deve ter por volta dos 53 anos e é muito bonito.
   Um garoto um pouco mais novo que eu, talvez 16 anos, levanta a mão e começa a contar sua história. Ele sofreu um acidente de carro e quebrou o cotovelo e o ombro, desde então não consegue mais praticar arco e flecha.
Depois dele foi a pessoa ao lado dele, e a pessoa ao lado dessa pessoa, e a pessoa ao lado dessa, e batemos palmas assim que cada pessoa termina de contar sua história. Ai chega minha vez.
    — Olá Aspen, bom te ver -diz Phill- o que gostaria de compartilhar conosco essa semana?
Fico parado pensando um pouco. Não tenho muito bem o que compartilhar.
   — Bom, acho que não mudou muita coisa desde semana passada. Eu consigo jogar futebol americano mas bem devagar, só em casa com uns amigos mesmo, nada pesado, nada importante.
   — Claro que é importante - exclama Phill - Jogar somente por lazer é melhor do que não poder jogar nada. É um avanço, e estamos muito orgulhosos de você. - Phill começa a bater palmas, acompanhado pelos outros participantes, e passamos a voz para a pessoa ao meu lado.
                                 — // —
    Quando sai do círculo da harmonia já era umas 16:00. Estava indo ao metro para voltar para casa, mas no caminho passei pela Coffee Shakespeare e foi impossível não entrar. Eu amo essa cafeteria, você bebe café enquanto lê livros, isso é perfeito.
    Me sento numa mesa mais afastada e peço um chocolate quente. Pego um livro de uma prateleira próxima (corte de espinhos e rosas) e começo a ler enquanto bebo.
    — Corte de espinhos e rosas? O que está achando? - diz uma voz em cima de mim. Tiro os olhos do livro para olhar para a dona da voz e vejo uma garota linda, de olhos e cabelos escuros. Ela está vestindo uma calça jeans e uma camiseta sem estampa. Então sorrio e digo:
    — Estou relendo, na verdade. É um livro muito bom, um dos meus favoritos. - falo, e indico a cadeira à minha frente para ela sentar. Ela senta e diz:
— É o meu favorito também. Eu sou Morgana. - diz ela, estendendo a mão.
Levanto a minha mão para apertar a dela e me apresento também:
— Aspen. Você mora por aqui? - pergunto, tentando conhecer melhor a garota.
   — ah não, eu moro a uns 10 quarteirões daqui. Minha melhor amiga que mora aqui perto. Ela tá naquela mesa. - ela diz, apontando para uma mesa onde uma garota com cabelos loiros e curtos está bebendo café.
— Ah sim, acho que já vi sua amiga por aqui. - digo, meio pensativo. Realmente ela não me é estranha, e como muitas pessoas frequentam essa cafeteria é provável a gente já ter se visto por aí
— Eu não moro aqui na verdade, mas frequento bastante por causa do Circulo. - digo, e me arrependo no momento que as palavras saem da minha boca. Por vergonha, talvez. Por revelar detalhes da minha vida para essa desconhecida. E principalmente por que a maioria das pessoas não gosta de quem faz terapias, as chamam de loucos.
— Ah sim, o Círculo da Harmonia certo? - ela pergunta, e me sinto mais calmo. Talvez ela não seja uma dessas pessoas.
— Sim, vou lá faz uns 5 meses, mais ou menos. - digo. Não sei exatamente, mas acho que faz por volta de 5 meses. Ou 7? Bom, não importa também.
— Você acha bom? Minhas amigas estavam tentando me convencer a frequentar, mas não tenho certeza. - diz ela, corando um pouco. Ah, ela é como eu. Com problemas. Gosto de gente assim, elas entendem melhor. Por isso vou no Círculo ao invés de ir num terapeuta só.
— Lá é muito bom sim, é bom conversar com pessoas que entendem pelo o que você passou. Se você quiser posso te mostrar o lugar um dia. - eu digo. Se ela tem problemas, lá e um ótimo lugar para tratá-los. Mas ela demora um pouco a responder e fico com vergonha por oferecer um passeio a ela sendo que ela nem me conhece. Devolvo o livro à estante.
— Claro, eu gostaria. - ela diz, sorrindo pra mim, e logo depois olha para a mesa de sua amiga loira e outra garota, e quando volta a olhar para mim, ela fala:
— Acho que eu tenho que ir agora. - diz ela já se levantando.
— Tudo bem, quer me passar seu numero pra gente - faço aspas no ar -  "agendar a visita"? - dou uma risadinha, brincando.  Ela pega uma caneta que estava em cima da mesa (um pote com canetas e marcadores, para usar nos livros. Horrível, eu sei) e escreve um número num guardanapo.
— Me liga um dia desses. - ela diz dando uma piscadinha e voltando a sua mesa. Fico na mesa bebendo meu chocolate e pensando " que porra acabou de acontecer?" E rio.
Termino de tomar meu chocolate quente e recebo uma mensagem de minha irmã:

Mensagem
Emy❤️
Vou voltar pra casa mais tarde hoje, tenho que fazer um trabalho em grupo na casa de uma amiga, tem comida na geladeira. Se cuida bjos.
                              Eu
                              Tudo bem.                                                              
                                                        
Respondo a mensagem e vou pagar a conta do café. Quando estou saindo me lembro do guardanapo com o número da garota em cima da mesa. Volto e o coloco no bolso, e então saio.

                                  — // —

Ao chegar em casa, coloco o guardanapo em cima da escrivaninha e vou tomar um longo banho quente. Coloco uma calça de moletom e uma camiseta leve e fico fazendo maratona de filmes da Netflix. Por volta das 20:30 minha irmã chega em casa e vai até meu quarto.
    — Oi, sobreviveu? - brinca ela assim que chega no batente da porta.
    — Foi difícil, mas consegui.- brinco de volta.
    — Já jantou? - pergunta.
    — Ainda não.
    — Tudo bem, vou tomar um banho então pra gente jantar. O que é isso? - pergunta ela, apontando para o guardanapo em cima da escrivaninha.  Levanto e pego o guardanapo.
    — Só um guardanapo. - digo.
Ela me olha meio desconfiada mas diz:
    — tudo bem então, vou lá tomar o banho. - e se retira.
     Olho para o guardanapo na minha mão e penso " por que não?". Então pego meu celular e mando uma mensagem para o número nele escrito:

Mensagem
                          Eu
                           Topa uma visitação no sábado?

Envio e largo o celular, voltando para os filmes. 15 minutos depois a resposta chega:

Mensagem
                          Eu
                           Topa uma visitação no sábado?
Morgana
Se vc aguentar tanto tempo sem me ver.

Dou risada. Que audácia. Mas ela é divertida, pelo menos. Volto a ver o filme e espero um pouco pra responder. Depois de 20 minutos eu respondo:

Mensagem
Morgana
Se vc aguentar tanto tempo sem me ver.

                             Eu
                              Puts, difícil. Quer marcar        
para terça depois da escola?

     — Aspen, vem jantar. - grita minha irmã da cozinha. Desço as escadas e me dirijo até ela.
    — Peguei a lasanha que estava congelada na geladeira.- diz ela.
   — Tudo bem. - respondo
Nos sentamos a mesa, frente à frente, e começando a comer. Quando estou quase acabando chega uma nova mensagem de Morgana:

Mensagem
                       
                             Eu
                              Puts, difícil. Quer marcar        
para terça depois da escola?
Morgana
Beleza, as 15:00 então.
Até lá, bjinhos.

   — Com quem você tá falando? - pergunta Emy.
Levanto a cabeça do celular e olho pra ela.
    — Com ninguém oras. - respondo e volto a comer
    — Quer carona pra escola amanhã? - pergunta ela, sem tirar os olhos da comida.
   — Sim, por favor. - digo, olhando pra ela.
   — Como foi o trabalho? - pergunto, pra saber mais sobre a vida dela. Todo mundo precisa desabafar as vezes.
    — ah, foi bom. A gente conseguiu fazer tudo direitinho. Como foi o círculo? - pergunta ela de volta.
    — Foi legal até. Teve um novo garoto, mas as mesmas coisas de sempre. - respondo, e me levanto pra colocar o prato na pia.
    — Entendi. - responde ela. Percebo que está meio desanimada mas acho melhor não incomodar.
    — Bom, boa noite. - digo
    — Boa noite. - ela responde, e subo para meu quarto para dormir.
Amanhã é um longo dia.

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Mentiras acumuladas • EM PAUSAOnde histórias criam vida. Descubra agora