Capítulo VII

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Acordei, já era passada das duas horas da tarde. A Sophia continuava desmaiada, e a Manu havia sumido.

"Tomara que ela tenha ido comprar o almoço." - penso

Pego meu celular, na esperança de ter uma notificação no aplicativo do facebook. Mas não. Nada de notificação. Apenas cinco chamadas não atendidas: "Mom".

Falo com a minha mãe todos os dias. Todos os dias. É um ciclo vicioso, você liga um dia, e quando percebe, todos os dias as 11:30 h da manhã, você está a telefonar pra sua mãe, querendo saber o que aconteceu nessas ultimas vinte e quatro horas que passaram.

Mas tenho que ser sincera. Minha mãe não é de ligar repetidas vezes. Algo deve ter acontecido. Minha perna vacila, sento, respiro, um pensamento: Julie.

Julie é minha irmã, tem seis anos e é a menina mais linda de Gravataí. Já disse pra minha mãe, que se ela não cuidar vou raptar a Julie, e leva-la comigo. Julie tem algo que a faz "diferente'' de todos na sociedade.

"Diferente" coisa de gente hipócrita. Incrível como a sociedade impõe títulos sobre nós, e não nos demos o trabalho de questionar o porquê de tal titulo. A Julie é diferente, ou melhor, especial, como o Dr. Kurting, medico especialista em pediatria, explicou a minha mãe meses depois de saber que estava grávida.

- Mãe, precisamos ter uma conversa seria, seu bebê é especial. - disse o medico

- Especial? Como assim, especial? - diz minha mãe, na época com 40 anos de idade.

- Bom Sra. Isabel, desde o principio à senhora e seu esposo, estavam cientes, que a gravidez nessa idade, gera riscos, tanto para a mãe, quanto ao bebê. De acordo com exames feitos, seu bebê apresentou algumas anormalidades, um distúrbio genético causado pela presença de um cromossomo 21, batendo com as características de uma pessoa com Síndrome de Down. Irei explicar tudo conforme a senhora retorne as consultas. Mas não se preocupe. Não é nada anormal.

Nada anormal. Qual foi a palavra que ele usou ''algumas anormalidades". O fato é que a minha mãe ficou assustada demais, e por pouco, pouco mesmo, perdera o bebê.

Sabíamos o que preocupava a minha mãe: o preconceito que a Julie teria de enfrentar quando fosse à escola, no quanto as crianças seriam más e zombariam dela. Quando a minha mãe deu-me a noticia, que a Julie "era especial", foi um choque.  Sabia que teríamos que ter todo o cuidado do mundo, afinal, ela seria mais frágil que todas as crianças da nossa família.

Quando a Julie nasceu, eu me apaixonei na hora. Aqueles olhinhos puxados, e as bochechas gordas eram de perfeição tão assimétrica, que parecia ser impossível Deus ter feito algo tão lindo e ter colocado nas nossas vidas. Quando a Julie sorriu pra mim, ao ouvir a minha voz, eu descobri o que é amor de verdade. O que é o amor reciproco que todos falam.

E cá estou, trêmula ao discar o número de minha mãe, temendo saber o que ela quer.

- Alô, mãe? - digo

- Oi meu amor, que demora em atender esse telefone, espero não ter te acordado. - diz mamãe tranquila demais.

- Sophia teve uma noite do cão. - digo rapido demais, nervosa demais.

- Ah, entendi. Nat, queres vir almoçar conosco? Julie precisa de você.

- Sim mãe,  chego aí em trinta minutos.

Julie precisa de você. Julie precisa de você.

Saio de casa tão apovarada, que deixo meu celular em casa. Pego um trânsito dos infernos, pelo amor de Deus? Moro em São Paulo e não me lembro? 

Demoro em torno de uma hora, para chegar na casa de meus pais. Entro na garagem e encontro meu pai, fazendo o churrasco. Mais um tipico domingo gauderio.

- Oi pai, como vai? - digo recebendo um abraço tão forte, capaz de quebrar minha costela fina.

- Oi Nat, está tudo bem guria. Não te preocupes. A Julie só está meio fraca. Queres te ver, mas você não atendia o telefone. Entre, sua mãe está preparando o almoço. - papai diz, voltando a atenção para o churrasco.

O cheiro estava tão bom, que me fez sentir nauseas. Eu tomei café?

- Mãe? Julieeeeeeeeeeee? O Julie?? Venha cá guriazinha, venha me dar esse abraço que tanto me fez falta. - digo, tentando conter as lagrimas que chegaram aos olhos quando a Julie apareceu.

Branca,chegando perto de estar transparente. Com o edredom em volta da cabeça e o ursinho de pelucia que derá no ano anterior, no dia do seu aniversário.

- Oi Nat. - disse Julie com a voz de sono, vindo em minha direção e jogando-se nos meus braços.

- Hi, little princess. Como você está? - digo, beijando sua testa, olhos e bochechas.

- Hey Nat, pare. Estou, hum, com saudades. Volte para a ... - Julie para de falar, dando inicio a tosse. Tosse. Tosse. Tosse. Ela começa a ficar sem ar.

Pega Julie no colo, e vou até a cozinha. Mamãe está com um copo d'água.

-Beba Julie, beba tudo. - Mamãe diz.

- Credo Julie, desde quando deu pra tossir tanto? Hein pequena? - digo bagunçando o cabelo dela.

Julie apenas olha e dá um pequeno sorriso. Mas seus olhinhos puxados não exibem sorriso algum. Eles estão parados, exaustos. Julie desce do colo de mamãe, e vai para a sala.

- Oi mãe. - digo abraçando minha mãe, lembrando do quão bom é esse momento. Sim, já havia esquecido.

- Oi Nat, poderia me ajudar a preparar o almoço? - mamae diz, ela está exausta. Seus olhos revelam isso: fundos, caídos, pigmentação avermelhada e não irei comentar as olheiras em volta.

- Claro, mãe. Queres que prepare a salada de batatas? 

- Sim Nat, faça isso por mim? - mamae diz

Mamae volta para o fogão, mas não aguenta e dispara.

- Nat, a Julie - ela começa a chorar. O choro vem seguidos de soluços.

- Mãe, o que a Julie tem? - digo, começando a chorar. Sempre choro. Sou chorona mesmo. 

- Hipodiroidismo, amidalas, glaucoma, pneumonia. Não sabemos mais o que fazer. O indice de imunidade da Julie está abaixo do normal. Os remedios não fazem mais o efeito proposto pela bula. O unico efeito é que a Julie está dormindo muito mais. Ela não tem mais animo pra nada. Nem pra almoçar. E agora, ela implora pra te ver.

Eu sei, eu sei que é um absurdo o que eu vou falar. Mas sabe quando alguem fica muito doente, e sabe que vai morrer, ela tem um ultimo pedido não tem? Os médicos sempre falam que elas tem um ultimo pedido. Juro, que pensei que o ultimo pedido da Julie, fosse me ver.

- Antes que você pense besteira Nate, ela não vai morrer ok? Só queres que tu passe mais tempo conosco. Sera que você pode passar uns dias aqui? - mamae diz.

Vou até a sala de estar e digo:

- Julie, vamos arrumar uma cama pra mim? Ou melhor, vamos montar uma cabana?

- Vamoooos, diz ela. - Impressão minha, ou ela está se entusiasmando?

Volto para a cozinha. Mamae deu fim a batata. E já começava a colocar a mesa, quando papai entra, trazendo alguns convidados para o almoço. Bem que eu imaginava, era comida demais. Mesmo prum gaucho.

- Temos alguns convidados, nossos vizinhos estão sem churrasco. Oras. coloque mais tempero na carne Nat, os Rezendes estão lá fora.

Sabe caroço da azeitona? Então, engoli. Comecei a ficar sem ar. Roxa, azul, verde. Vou morrer engasgada. Mamae esta balançando um pano na tentativa de puxar o caroço da minha garganta atraves de vento. Bebo um gole d'água, mas nada resolve. Papai dá tres batidas nas minhas costas e o caraço sai 

A unica coisa que não muda, é a cara de assustado do Murilo me olhando pela  escada da cozinha.

Apenas uma questão de tempoOnde histórias criam vida. Descubra agora