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Havia muito tempo que eu não olhava pela janela. Desde que Gabriella se mudou, ver do meu quarto a piscina no térreo da casa onde minha melhor amiga morava, agora cheia daquela água esverdeada e algumas coisas estranhas boiando ou nadando, me trazia mais dor do que boas lembranças do tempo em que ela era minha vizinha. Teve uma vez que eu vi uma família de ratos se refrescando lá em um dia quente; outra vez eu poderia jurar que vi algumas larvas de mosquitos, daqueles que gostam de sugar nossa alma e deixar nosso corpo cheio de manchas horrendas. Vi de tudo, menos minha amiga.

Até hoje não sei muito bem o que aconteceu, só sei que ela me mandou um áudio chorando e dizendo que iriam que se mudar naquele dia. Disse algo sobre morte e partir, mas não consegui entender. Mesmo depois de tanto tempo, ainda não tenho coragem de ouvir seu último áudio, seu choro cortante, as palavras atropeladas... No início, ouvia os áudios antigos e lia as longas conversas; com o tempo, passei a ouvir só os áudios felizes e agora me contento apenas em ver se ela fica online.

Mandava mensagem a cada 5 minutos, depois a cada 6 horas, depois a cada 7 dias. Nenhuma delas foram recebidas. Houveram momentos em que eu me dizia que ela havia me bloqueado por algum motivo desconhecido, mas sua foto no perfil me contradizia na mesma hora.

Claro que tentei ligar pra ela, mas a resposta foi tão frustrante quanto as mensagens não visualizadas. Ao invés de sua voz, ouvi uma voz robotizada de outra mulher dizendo que o celular estava desligado ou fora da área de cobertura. Também tentei contato por e-mail, tanto que tenho quase certeza de que meu e-mail foi considerado spammer. Sem resposta.

Nossos pais eram amigos muito próximos, tanto quanto nós duas, mas diferentemente de mim, eles não pareceram se importar. Minha irmã mais velha, Yonghee, não gostava muito dos pais da Gabriella, mas tinha um certo afeto por ela. Por mais que eu perguntasse a eles, sempre se resumiam a dizer que eles partiram. Indagava quase todos os dias se eles sabiam de algo que eu não sabia e ou me davam de ombros ou diziam que tínhamos que respeitar as escolhas deles. Eu até aceitaria se não fosse aquele áudio e como eles sumiram feito fumaça.

Falando assim, até parece que não tenho outros amigos, nem mesmo saio de casa. A verdade é que eu saio e muito com meus amigos, mas nenhum deles chega aos pés da minha (ex) melhor amiga (que sumiu sem deixar rastros). No início, minha família pensou que eu daria uma de Bella Swan em Lua Nova, toda deprimida e procurando perigo para preencher o vazio. Ao verem que eu prossegui sem a Gabs, me deram um pouco mais de liberdade e pararam de pedir pra que minha irmã me vigiasse. Yonghee é uma ótima companhia, mas só de pensar que ela estava servindo de X9, estragava um pouco a diversão.

Me forcei a sair do devaneio de lembranças passadas para dar a olhada diária no celular. Por um milésimo de segundo, poderia jurar que havia visto um "online" próximo ao seu nome. O coração deu uma batida mais forte e se acalmou ao ver que não havia nada de novo lá e que meus olhos haviam me pregado uma peça. Suspirei para acalmar e decidi encarar a piscina verde e mais um susto: onde havia uma água verde, estava uma água claríssima, revelando a cor original da piscina e alguns de seus adesivos de sakura. Próxima a ela, havia uma pessoa com um boné, todo de preto.

Não era ela e disso eu tinha certeza. O primeiro deles: duas coisas que ela mais odiava no mundo eram mulheres usando boné e montar o look todo em uma cor. Uma vez eu estava usando tudo verde e ela passou o dia me chamando de cacto. Para a minha infelicidade, perguntei o motivo de ser um cacto e não uma mera plantinha e ela disse que meu cabelo frizzado eram os espinhos. É nessas horas que eu queria aprender a viver sem entender do que pedir explicações do tipo, mas é automático.

O outro motivo é que a pessoa não tinha o menor aspecto de ser uma mulher. Não tinha nenhum volume peitoral, possuía uma postura mais rígida e pequenos músculos eram visíveis em seus braços. Embora Gabriella também não tivesse muito volume peitoral, a postura dela era mais relaxada e tinha um pouco de aversão a malhar os braços. Não era ela.

Meus olhos se voltaram em direção a tela do celular e percebi que as mensagens haviam sido entregues; nada mais de um simples "V", mas dois "V". Só pode ser ela, pensei. Ela voltou e trouxe um namorado. Será que foi por isso que ela partiu? Será que os pais não aceitaram, ela fugiu com ele e os pais foram atrás dela? E será que agora está tudo bem?

Desci as escadas correndo descontroladamente em direção à casa vizinha. À porta, estava minha mãe com uma embalagem da Tupperware pronta para presente. Para não colidir com ela, tentei controlar o embalo do meu corpo, mas só consegui escorregar e cair sentada no chão. Maldito azulejo.

— Pra quem é esse presente? — Perguntei, me esquivando da possível pergunta da minha mãe sobre minha corrida.

— Isso? É para os nossos novos vizinhos — falou animada, se esquecendo que sua filha mais nova estava estabacada no chão.

— N-novos vizinhos? De qual casa? — Algo me dizia que essa era mais uma daquelas perguntas que eu não me arrependeria de fazer.

— Da única casa que estava vaga, ora! Eles se mudaram ontem de noite.

— De noite? Eles são vampiros ou algo do tipo? — Tentei disfarçar a decepção de ter minhas teorias destruídas. — Cuidado pra não convidar eles aqui pra casa, senão eles vão sugar até nossa última gota.

— Para de falar besteira e vamos lá dar as boas vindas.

— E vampiros são bem-vindos? Tirando a época do Crepúsculo, Diários de Um Vampiro e Entrevista com o Vampiro, ninguém quer virar jantar. Nesse horário, seria lanchinho da tarde, né?

Minha mãe me lançou um olhar de censura que me fez calar. Ou era o silêncio ou ver algo voando na minha direção, e como estamos numa cozinha, o mais sábio é ficar quieta.

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