Vamos falar do narrador?
Canso de ver amigos escritores em crise quanto ao narrador que vai contar a estória que eles têm em mente. Não é por acaso: essa é uma decisão que pode mudar tudo!
Caso, com o parágrafo anterior, eu tenha feito parecer que essa dúvida nunca me aflige, eu guardei para o fim da explicação o meu exemplo de crise com narrador, muito atual (pelo menos enquanto estou escrevendo, aqui). Com este exemplo, espero conseguir demonstrar a importância da definição do narrador.
Um dos meus projetos mais antigos de livro (romance) chama-se "O Levante". É possível que você já tenha ouvido falar nele quando ler o presente texto, pois ele já está bem avançado no momento em que eu escrevo. Mas, ele tem mais de dez anos em minha cabeça. Minhas primeiras tentativas de escrevê-lo remontam a 2008, 2009 (no mínimo onze anos, pelo menos), e o material que tenho mais antigo (as primeiras cópias foram perdidas) são arquivos cuja última modificação é datada pelo computador como de 19 de abril de 2014, todos os capítulos, (certamente a data de cópia, pois não escrevi tudo num só dia).
A demora para terminar este projeto é justificada não apenas em problemas pessoais que me fizeram simplesmente parar de o escrever repetidas vezes (e por prolongados períodos), ou pela minha clara e evidente imaturidade e falta de planejamento para organizar toda a estória, falhas minhas que, como sabemos, podem provocar brancos terríveis - e provocavam! Um dos motivos mais importantes é a jornada para encontrar o narrador!
Mas, quem é o narrador? Engana-se o leitor - ou mesmo o escritor - que crê que o autor é quem conta a estória. Não que ele não o faça, ou não seja peça chave neste processo. É ele quem dá à luz, cria, desenvolve, alimenta e instrui a estória como um pai cuidadoso faz a seu filho. Mas, é por intermédio de um alter ego, um verdadeiro "outro eu", o eu lírico criado especialmente para isso, que o escritor conta a estória. Este outro "eu" é o narrador, e ele é quem verdadeiramente conta.
Quem é esse tal de narrador? Qual a voz do narrador?
Primeiro, pense no narrador como alguém.
Sim, alguém. Eu gostaria de dizer que o narrador é um dos personagens do livro, mas, isso poderia ser confuso, já que, tecnicamente, nem sempre o será. Mas, quem narra é, no mínimo, alguém.
E quem é esse alguém? Certamente, você conhece pessoas diferentes, com valores distintos, e diversas maneiras de ver o mundo.
Devido ao contexto social de grande parte das sociedades durante toda a História da Humanidade, homens e mulheres costumam ter papéis de gênero bem definidos, e por isso a escolha de qualquer desses contextos influi em como narradores nesses contextos veem a si e aos demais membros de uma sociedade. Seus pontos de vista, forças e fragilidades, firmezas, convicções e inseguranças variam conforme os papéis de gênero de sua sociedade ou contexto, e isso é determinante para o modo como contam suas estórias. Numa sociedade da dita Alta Idade Média, um narrador homem está imbuído da certeza de sua superioridade e da descartabilidade da mulher e dos filhos. Sua esposa é uma propriedade sua, que vale menos do que uma vaca e, talvez, mesmo do que uma cabrita, e também não lhe desperta tanto desejo, posto que ela se desgasta imensamente ao fazer o trabalho duro da roça e vive suja e maltrapilha. Se a estória é contada por ela, ela certamente não terá valores diferentes. Não é o mais provável que ela vá se defender ou se revoltar, pois não há empoderamento feminino nesse contexto. Mas, a mesma estória sob seu ponto de vista poderá transformar o modo como vemos os acontecimentos. De sua posição social, ela certamente terá certo temor, alguma melancolia ou até amargor em como vê o mundo. Esta mulher certamente irá compartilhar mais os pesos e os sofrimentos desta vivência, e provavelmente perceberá muito mais as outras mulheres com que convive, não como peças pouco relevantes da estória, não como criaturas inferiores e sem valor, mas, como iguais (tenha ela um comportamento de cooperação ou de competição).
VOCÊ ESTÁ LENDO
COMO ESCREVO e como isso pode te ajudar
Non-FictionQual é o problema de simplesmente usar a imaginação e tocar fogo (metaforicamente) na caneta (ou o teclado)? NENHUM! MAS, fazê-lo com técnica e planejamento me levou a novos patamares. Quero compartilhar minha experiência com você, que escreve ou pr...