Não é uma história limpa.

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  Andava pelo deserto, sem destino; sem sorte... suas botas tinham solas mais gastas do que os canos de revólver que precisou enfrentar, se queria mesmo chegar à bendita Cidade de Clifford com seu coração intacto... a sua moringa se perdeu na areia, durante um tropeço, apenas para fazer o que vinha fazendo há dois dias e duas noites: acumular o vento e o pó. Apenas algumas poucas balas restaram no revólver do coldre; três, no total. A ferida que tinha no braço estava devidamente contida com faixas, e a coagulação foi bem ligeira. Desde que havia escapado da mina de ouro dos Valadares, a índia esteve cansando muito rápido; ela sabia que provavelmente estaria à pé durante toda a ida até Clifford... dependeria da sorte para voltar à civilização, mas o barman dependeria da paciência, se quisesse ficar rico. O que a índia mais queria naquele momento era um banho de água fria, no primeiro coxo que lhe passasse pela vista...

  Ouviu o cavalgar de um animal atrás de si, correndo com pressa na sua direção. Ela sorriu com esperança e acolhimento para o nobre cavalinho solitário. "Tsc! Eu te falei pra não ficar, Jadair..." A índia lembrou o equino, que diminuiu a velocidade para ouvir a voz de sua dona mais de perto. Ficou ao lado dela, fazendo sinais amistosos com a cabeça, e recebeu um carinhoso cafuné em suas crinas negras. "Mas que bom que ficou, leal amigo... se Manitu te protegeu da explosão da mina, Manitu te quer aqui comigo!" O cavalo estava muito animado, como se tivesse entendido o que aquelas palavras significavam. Talvez, tenha mesmo... então, a índia e Jadair galoparam até a bendita cidade. Cartazes de desaparecidos eram quase peças culturais daquele lugar, de tantos que podiam ser vistos nas paredes de estabelecimentos. Os cartazes de "procurado" praticamente não existiam ali. Curiosamente, a grande maioria dos desaparecidos eram índios. Os transeuntes comentavam alto os boatos de que uma tribo inteira foi chacinada por uma tal família, que não sabiam o nome. Estranhos de terras distantes vinham contar os detalhes que o correio local nunca parecia se importar... mas graças à índia, aquelas paredes, cheias de desenhos, fariam parte apenas do passado. Isso, muito em breve... ela atou seu cavalo no coxo, e olhou para o lado: outro cavalo, aparentemente mais veloz e capaz do que o Jadair; tinha um chapéu de grande aba amarrado na sela. A moça esperou uma carroça passar pela rua, e quando uma chegou, ela secretamente puxou um facão indígena... a visão de alguns cowboys transeuntes não pôde captar o que aconteceu; só se viu que a índia entrou no bar com um chapéu na cabeça. O que não fazia sentido, se haveria sombra lá dentro...

  Ela abriu a porta do bar com um pouco de desleixo. Os olhos cobertos para enxergar apenas o que estava à sua frente. Tentou dar uma olhada para o segundo andar, conseguindo avistar um burguês. Ele estava vestido de camisa branca amarrotada, e suas mãos, presas ao apoio de madeira, o sustentavam de pé. Saía fumaça de sua boca e suas costas estavam arqueadas; observava o jogo de cartas que era jogado numa mesa lá embaixo... em segundos, o burguês percebeu que a índia estava olhando para ele, e se esticou para reconhecê-la. Ela rapidamente desfez o olhar e sentou-se ao bar, chamando o bartender com uma voz grossa, que não era a dela:

  -Boa tarde, meu consagrado!

  O atendente olhou para a moça de um jeito esquisito.

  -Boa tarde... o que vai ser? - Foi como o bartender reagiu.

  -Eu só queria ter certeza... - Respirou fundo. Aquela situação era muito esperada por ela, mas era tão difícil segurar as emoções à flor da pele... - Quem é o homem lá em cima? Com aquela porção de putas?

  A índia perguntou, enfim. "Valadares." Foi o que o bartender respondeu; parecia surpreso em ter que responder. Ela então notou que os Valadares eram pessoas respeitadas em Clifford... "Mas qual deles?" A índia insistiu, atiçando impaciência no bartender, que respondeu:

  -Daniel, irmão do Thiago Valadares! Você vai pedir alguma coi...

  A moça olhou para Daniel e sacou o revólver, disparando naquele homem todas as balas que tinha. A maioria dos cowboys do bar pararam para ver, com as armas em mão. A índia continuou apertando o gatilho, ainda que nada mais estivesse saindo... seu rosto pouco a pouco se repuxava e suas formas se distorciam. Ela sentia a pele dos lábios secos se romper, formando linhas vermelhas em sua boca. Ninguém lá dentro se moveu. Só quando a moça olhou para o bartender, notou que ele estava segurando uma espingarda, apontada para o peito dela... foram três tiros precisos no peito daquele Valadares, e ele morreu no lugar onde estava. Com uma voz rouca, ela abriu a boca o máximo que conseguia, e fez ecoar pelo bar uma mensagem aos Valadares:

  -Pela minha família, seu filho da puta!

  Seu chapéu caiu no chão. Entretanto, a gravidade não pesava tanto quanto o ambiente, e os cowboys demoraram um pouco até perceberem a etnia da moça; difícil notar, estando castigada pela poeira do deserto e pela sede de água; e de vingança. O bartender guardou a espingarda embaixo da mesa. Ninguém disse nada à índia, só voltaram ao jogo. Ela olhou para o chão... suas botas precisavam ser trocadas quando pudesse. Voltou a sentir os calos. Companheiros fiéis. O bartender encheu um pequeno copo com uísque caro.

  -Por conta da casa. - Ele informou.

  A índia levantou o copo para cima.

  -Aos navajos. - Ela sussurrou, e só o bartender ouviu.

  Ele respirou fundo, olhando para ela. Admirava sua coragem. Geralmente ele não botaria a mão no fogo por ninguém; mas ela, sim.

  -E então? O que vai fazer agora?

  O bartender perguntou, com um sorriso contagiante no rosto. A índia sentiu uma coceira nos cantos da boca. Não evitou um sorriso.

  -O que você quer dizer? - Ela indagou.

  -Ora, o irmão dele vai te caçar feito cão, agora.

  Ela pediu mais uma dose. O bartender não negou, botando a garrafa ao lado do copo, para que a moça se servisse à vontade. Ela não fez desfeita e bebeu mais um. E bateu o copo na mesa.

  -Vou aproveitar o tempo que me resta... - Respondeu, esticando seus pés cansados. - Mas confie nos boatos que você ouve por aí...

  O velho gostou do jeito dela. Da tranquilidade com que lidava com a morte, e com o risco de morrer. Então, deu mais corda para que ela falasse e o entretesse.

  -Ouviu falar de alguma coisa? - Ele indagou.

  -Hum... ouvi dizer que ele estava trabalhando na mina Valadares, há dois dias...

  -Hum... - O bartender sorriu, esperando mais. - E então?

  -Continue escutando os boatos.

Pele VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora