Ato 1.
Sua história começara aqui?
Fora com esta pergunta que Rafael Bioni despertou de supetão na madrugada de sexta-feira, deixando certo mau gosto no canto inferior da boca ao olhar para o relógio, com seus dois sinos abobados e um mísero martelinho prateado ao meio, que dormia silenciosamente sobre a prateleira externa do guarda roupa embutido e planejado.
Resmungou algo enquanto limpava com uma mão a saliva escorrida pelo canto da bochecha e se debruçou para aproveitar a única infeliz hora de sono que restara.
Como saber se sua história começara se não podia nem narrar os enfadonhos sonhos que tinha. Logo dormiu novamente, e sonhou outra vez. O que ocorria desta vez mesmo? Três... não, quatro cantores famosos adentrando um palco lustroso no conhecido programa de televisão The Voice, contudo não se tratava da versão brasileira, pois todos os quatro jurados cantavam – a canção do apocalipse, o jubilo do primórdio do fim – em diferentes línguas como se a bendita torre caísse naquele exato momento confundindo todos os idiomas, e embora pensasse que poderia se tratar de simplórios covers, a energia que aqueles quatro exalavam era surreal. Todos em trajes sociais e portando ao menos um acessório de riqueza em alguma parte do corpo. Nenhum rosto visível, apenas silhuetas borradas e mal contornadas. Exceto pelo jurado da ponta sestra, os demais eram declaradamente figuras masculinas, não devido ao corpo (um deles era magro demais, sem músculo algum dando volume à roupa), à sua forma, mas sim devido ao que eles soltavam conforme vibravam pelo palco, quase como se falassem toda verdade sobre si mesmos através do som que explodia os tímpanos da plateia e de Rafael que assistia tudo de frente. Exceto aquele um, o da ponta da esquerda, ele apenas vibrava mistério.
As luzes coloridas desciam como cachoeiras encharcando sua visão. O primeiro jurado (o mais próximo, foi assim que soube que ele seria o primeiro em seu escalão) aproximou-se e largou o microfone que provocou um baque agudo ao sair pelos alto-falantes. Seus pulsos magros e ossudos, brancos feito pó de giz, estenderam-se e foram iluminados pelas centenas de luzes que pareceram focar naquele único ponto, e naquelas algemas demoníacas que retorciam suas veias.
Rafael apanhou de mão cheia a magricela corrente que unia aquelas algemas e pode ver a face da caveira dentro do capuz que agora contornava o primeiro jurado. Não mais uma roupa social de grife, apenas um manto preto que farfalhava com o vento que surgia de nenhum lugar aparente. Um segundo após soltar assustado as amarras do homem, seu crânio seco sob o capuz foi envolto por carne cadavérica e continuou se modificando enquanto provocava ruídos de vermes devorando carne podre. Vermes regurgitando carne podre, pois o tempo se tornara rebelde e retornava, devolvendo ao homem um rosto jovem, quase infantil, cheio de luz. E Rafael pensou:
- Você é apenas um menino.
E as correntes caíram enquanto os outros jurados seguiam para os fundos, para o camarim, para detrás das cortinas listradas de três exatas cores berrantes: verde como as matas e florestas amazônicas, azul como o oceano atlântico e branco como as nuvens do céu. Os três voltaram para os bastidores do planeta para esperar.
Sem mais show ou canto, Rafael cambaleou e o menino com suas correntes vociferadas o seguiu sem um olhar fixo. Quando abriu a boca escondida na escuridão do manto para pronunciar algo, o despertador zumbiu como se mil abelhas fizessem ninho atrás de seu cérebro e por fim o ferroassem ingratas pela toca. Acordou.
Ato 2.
Seu cabelo oceânico esvoaçava ao vento. Fios pretejados como carvão molhado batiam e voltavam como uma maré ao acertar rochas nas beiradas da praia, provocando a erosão e barulho salgado, tudo obedecendo e circundando o redemoinho no topo da cabeça. Liso e escorregadio como água, a maré descia em traços triangulares pela nuca, onde era mais escassa, e retornava lançando-se para cima espetando de volta o ar gélido.
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Os Quatro Cavaleiros do Fim
Adventure"Eles vão se levantar frente aos terrores que pairam a terra. Um por um, os quatro hão de vir para tomar dores novas e defender os humanos remanescentes da antiguidade. Do mal, do vil, do estranho e do poderoso, de tudo, se farão de escudo e de espa...