Capítulo 14: Ângela paga contas

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Ato 1.

Rafael saíra para trabalhar e ela voltara a dormir. A casa poderia esperar mais um pouco, por isso aproveitou mais algumas horas de sono. O marido, a quem era muita devota desde o dia que seu pai a levara no altar para entregar-lhe a ele, também tomara seu rumo para o serviço. Eram dias conturbados esses que passavam, Rafael sumira de fininho como um rato ligeiro durante o dia todo de ontem, não dera as caras no churrasco, mas Jair conversara com ele. Jair fora severo e pulso firme com Rafael. E isso era bom, evitava que precisasse criar mais rugas de expressão. Os pés de galinha nos cantos dos olhos também estavam mais visíveis, e as estrias pelo corpo a deixavam de cabelo em pé; cabelo que ganhava fios brancos e que caía mais e mais com o tempo.

O tempo passara voando, debruçou-se para o lado vazio da cama e pegou o celular e os óculos sobre a cabeceira, ia só dar uma olhadinha impulsiva antes de levantar-se, nada demais. Parou com a luz entrando pela janela do banheiro e correndo pelo corredor e lembrou subitamente, como se por milagre, que estava sozinha, não precisava se preocupar em aborrecer o marido com sua mania ruim de ficar no celular.

Ah, o tempo passara voando. Precisava ir à lotérica pagar algumas contas.

Tomou um banho rápido como sempre. Era um ato inconsciente, crescera com seus irmãos na extrema miséria e banhos demorados custavam muito, especialmente se não sabia o humor a qual a mãe acordaria. Era sempre assim, um banho rápido por irmão, alguns dias alternavam para economizar, alguns dias não tomavam banho porque a mãe levantava com a lua torta e não queria ouvir barulho, nesses dias Ângela, a mais velha de cinco irmãos, levava todos para o parque no quarteirão de casa para dar sossego à mãe.

Secou o cabelo com a toalha amarela que adorava, pois ela lhe lembrava margaridas. E no espelho embaçado escorreu a mão. Viu o reflexo de uma mulher magra e baixa, com a pele começando a se tornar mais fina, mais flácida diria seu clínico geral em um tom rabugento. Pesava cinquenta e cinco quilos, cinquenta e seis no máximo ou cinquenta e oito se a balança da farmácia estivesse com defeito, mas não reclamava, até julgava um bom peso, ela não percebia, mas em sua cabeça de mulher de meia idade ainda restava resquícios da época em que fora atentada pela bulimia. Quanto menos melhor, menos é mais. Lembre-se sempre disso, pensou. É como crescer em meio a tantos irmãos e isso ela tirara de cor.

Mulher bem vívida, mulher que sabe das coisas.

Ato 2.

No topo do bairro fica o Lago. O Lago é uma parada de abastecimento próximo à rodovia onde motoqueiros e caminhoneiros vêm e vão como clientes mais comuns, mas também tem um McDonald's e um Starbucks, um KFC e um mercado conveniência, um banco 24 horas e uma vista incrível. De um lado estava o bairro Jardim das Hortênsias com suas admiráveis casinhas que lembravam uma construção de blocos de montar, daqueles de madeira, várias peças, telhadinhos e torres de relógios azuis. Do outro lado havia a longa estrada asfaltada. Ela alternava em olhar para ambos os lados, ora o costumeiro, ora o diferente. É a vida, não é? Pensou. E de fato era como a vida. Seu lar à sua direita e a viagem à sua esquerda. Alguns vão, outros ficam.

Pagou as contas e agradeceu à mulher da lotérica mesmo ela tendo demorado o que parecera uma eternidade para atendê-la, pelo bom Deus, a fila se arrastou como um caramujo, já estava na hora do almoço e Ângela estava ali ainda.

Estava de saída quando atravancou o caminho de um casal que saía do mercado conveniência, pensara e matutara se deveria comprar algo pronto para esquentar no micro-ondas, algo fácil e que talvez lhe desse dores estomacais mais tarde. Acabou entrando.

O carrinho que pegara, para colocar a bolsa que incomodava no ombro, deixava um tracejado sujo no piso conforme deslizava e rangia desconfortavelmente.

Os Quatro Cavaleiros do FimOnde histórias criam vida. Descubra agora