Ato 1.
Noite de domingo sempre fora especial para Sofia. Acabara de colocar Giovanna, sua linda e pequenina filha de cachos sistemáticos, na cama. A menina apagou no sofá da sala quando o relógio bateu definitivo às nove na parede, o sino vibrou pela sala toda, por mais que odiasse, era herança de família.
No silêncio aterrador, ela observava pela fresta entreaberta da porta. A cama ilustrada com a princesa Cinderela e sua preciosidade deitada sobre ela. Filhos dormindo são como joias guardadas, você ama tê-las, mas quando as guarda, o mundo fica mais leve, como se soubesse que ao menos durante aquelas horas, estariam seguras de perigos mundanos.
Foi ao banheiro trocar-se. Vestiu o pijama favorito de renda azul bebê. Seu favorito, pois era o favorito da filha – mamãe, mamãe, é azul, mas é um azul lindo, né.
Jantou a sós com Jorge, e namorou um pouco no sofá (este ganhara quando casou-se com seus vinte e três anos ao engravidar). Quando o marido cansou-se, foi deitar.
Solitária tomando um café em frente à TV, clicava no botão do controle remoto como se estivesse caçando hienas. Indecisa entre as emissoras, mas era domingo, nada interessante passava para agregar na cabeça puritana e recatada que tinha. Ah, ah, que dia cansativo. Foram a festa de Maria Clara, amiga do infantil de Giovanna. Nunca vira tantas crianças, num período tão curto, pulando, dando cambalhotas desajeitadas no ar e caindo drasticamente, porém bem, num só dia. Sobressaltava a cara e o nariz toda santa vez que via as artes das crianças nos brinquedos, e acredite, eram muitos brinquedos. Regalia da mãe de Maria Clara, que era rica – Jorge, essa casa é enorme, tem muitos cômodos e olha esse quintal, eu tenho pra mim que o marido dela é envolvido com alguma coisa pra ser rico assim, Santo Deus. E de noite, como era domingo, foi à igreja adorar o bom Deus.
Ouviu uma tossida vindo do quarto da filha. Agradeceu ao Senhor por ter a filha para se ocupar (não que ela fosse um trabalho como outro qualquer), pois não saberia o que fazer da vida se não fosse mãe. Ser mulher, para ela, empunha muita força porque como seu pastor uma vez lhe dissera: Você faz parte do sexo frágil, do que é delicado e que cuida, então quando Deus lhe deu a benção de gerar um ser tão precioso como um bebê, Ele também lhe deu força, pois és mulher e noiva daquele que um dia morreu na cruz para livrar-nos dos nossos pecados. É claro que tinha sonhos quando mais nova, mas sua mãe estava certa quando explicou-lhe logo cedo que não deveria pensar alto. Deveria ser comportada, nunca fugaz, para conhecer um bom homem escolhido por Deus, para casar-se e poder gerar frutos – claro, na época ela não entendeu o que era gerar frutos, depois lhe veio ao conhecimento que se tratava de namorar, mas dar mais que uns beijos, e claro como a neve, sua menina tonta, nunca esqueça que só depois do casamento.
Beijou a filha na testa e apanhou um lençol no guarda-roupa para cobri-la. Caso esfriasse mais, pegaria uma coberta.
Voltou para a sala e desligou a televisão. Tempo ocioso é oficina do diabo. Então pegou a bíblia na estante e sentou-se numa das cadeiras à mesa da cozinha. Uma casa pequena e simples, mas envolta pela graça de Pai, amém.
O vento pela janela acariciou seus ombros e as tiras do pijama – azul bebê, mamãe? Bebê igual eu?
Vez ou outra uma página se erguia contornando a paciência dela. Paciência que se foi na quarta lufada de ar. Levantou balbuciando na cabeça alguns palavrões, só dentro da cabeça pois era para o maligno não ouvir. E fechou a janela. Em um ato de esperança morrendo, o vento levantou várias páginas e fez o livro dos profetas cair na passagem de Apocalipse.
Ela sentou-se e passou a ler o capítulo 6. Leu depressa o primeiro versículo e vagueou pelos outros. Parou no versículo 17, leu alto acompanhando com o dedo:
- Pois é chegado o grande dia da ira dos Quatros Cavaleiros do Fim e quem poderá fazer frente a eles? – o corpo arrepiou degelado.
Piscou e olhou de novo.
17. POIS CHEGOU O GRANDE DIA DA IRA DELE; E QUEM PODERÁ SUPORTAR?
Suspirou sem saber o porquê de se preocupar repentinamente.
Fechou a bíblia e saiu para a varanda do quintal, só para sentir o aroma da Dama da Noite um pouco e espairecer. Debruçou o corpo, com curvas que faziam o marido pirar, na mureta que dava para ver a rua.
O vento assustava soprando pelos cantos e levando pétalas da cheirosa árvore, mas piorou quando ouviu o choramingo atrás de si. Virou pronta para tremer de antecipação, não acreditava em fantasmas, mas tinha certa crença em demônios. Mesmo não se deparando com nada, não pode deixar de falar algumas palavras como se expulsando o mau-olhado.
- Teu sangue tem poder sobre aqueles que em ti creem... teu sangue tem poder sobre...
O choro, outra vez, flutuando acima de sua cabeça. Ergueu vidrada pensando em arrepender-se dos pecados e o viu iluminado pela lua cinzenta. O filho do vizinho da casa da rua de cima. G-Gabriel... não. Rafael, isso, Rafael! Filho de Jair e de Ângela. Os ombros abaixaram menos tensos, dando vez às suas pernas desnudas gelarem. O garoto estava sentado sobre o muro da laje - ai, meu Deus do céu essa queda é perigosa, Jorge, se um dia eles derrubarem alguma coisa aqui embaixo e acertar a cabeça da Giovanna pode machucar muito feio mesmo, nunca deixe ela sozinha aqui quando eu não estiver, tá? Por favor?
Pensou em gritar para que ele saísse dali porque tudo que não queria era ensopado com carne moída de gente no seu quintal, mas ele poderia se assustar e cair de verdade. E seus pés, eles estavam descalços, balançando. E ele chorava. E se debatia como se fosse um viciado em estado de abstinência. E ele por fim caía. Ele caía, Sofia?!
Engoliu até a língua junto ao grito. E não era um grito como no quadro expressionista de Edvard Munch, nada como o vazio existencial. Apenas pavor ao ver alguém prestes a morrer. Virou para a rua e tampou os ouvidos para não ouvir o baque.
Embora preferisse deixar assim mesmo, não entendeu o porquê da quietude que prevaleceu. Nenhum som de carne humana atingindo o chão e estourando como se fosse um balão d'água – na festa de Maria Clara havia balões cheios de água, as crianças maiores brincavam na piscina chique com eles, como uma guerra.
Rafael apenas sumira. E no canto de sua mente, acionando o alarme de medo, tentou ignorar o que vira de raspão. Uma foice com alguém montado nela.
O diabo ainda brincara com seus sentidos enquanto estava virada, dizendo:
- Seeeegure firme minha mão... não solte... – como um sussurro perdido no vento.
Sofia entrou e trancou a porta para assegurar que sua família estaria salva das mãos de Satanás.
Haveria de contar para os pais daquele menino que ele certamente não seguia os caminhos de Deus, dito isso, eles deveriam, como bons pais, endireitá-lo. Está na bíblia que o uso da vara é um ato de amor, e com amor, eles deveriam castigar Rafael, sim, deveriam. Mas agora, um pouco menos alarmada, foi pegar uma coberta para a filhinha, pois esfriara um cadinho.
Noite de domingo era especial, paraSofia, e sua família. Uma família tradicional brasileira.
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Os Quatro Cavaleiros do Fim
مغامرة"Eles vão se levantar frente aos terrores que pairam a terra. Um por um, os quatro hão de vir para tomar dores novas e defender os humanos remanescentes da antiguidade. Do mal, do vil, do estranho e do poderoso, de tudo, se farão de escudo e de espa...