Cap. 3 - Dada a largada

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Oh queira
Basta ser sincero e desejar profundo
Você será capaz de sacudir o mundo, vai
Tente outra vez

- Raul Seixas 

MICHELE

— E você aceitou? Michele, você tá maluca? Você nem gosta de esportes, seu inglês é péssimo! E você quer que eu leve uma roupa nova para você na estação de metrô da Paulista? — Pergunta minha amiga Júlia, completamente pasma do outro lado da linha.

— Sim, Ju, é isso! E na ordem de questionamentos, não, não estou maluca. Não, não gosto de esportes, mas posso passar a gostar se eu começar a acompanhar. — Eu sinceramente, espero isso. É a minha esperança neste emprego. — Meu inglês não é ruim, só está um pouco enferrujado... e sim, minha calça rasgou e preciso que leve uma para mim. E um trocado também, estou sem grana. 

Assim que saí do prédio, liguei para a única pessoa que poderia me ajudar, minha amiga Júlia. Narrei os últimos acontecimentos da minha manhã maluca para ela enquanto corria, na chuva, para chegar a tempo no treino e cumprir a missão. Ao que me parece, o Chefe-cão não me quer na revista, pois a sua "tarefa" é coisa do "Missão Impossível". Por sorte eu tinho uma amiga nota dez tabalhando perto da Paulista, que conseguiu um intervalinho no trampo* e veio em meu socorro, me levando uma calça, emprestando alguns trocados e me desejando boa sorte! Era tudo que eu precisava, certo?

Errado!

A primeira grande dificuldade eu não preciso nem citar, todo paulistano de verdade sabe o quão ferrado é o transito e o transporte público da cidade. Mas paulistano não reclama, a diferença é que eu não sou paulistana.

Segundo meu cronograma improvisado para aquele dia cheio de improvisos, eu iria pegar o metrô na Linha Quatro-Amarela até a Linha Nove-Esmeralda da CPTM* e desembarcar na Estação Autódromo, situada a seis minutos de caminhada para o local onde ocorre o tal treino. Nos meus planos, eu iria sentar no metrô e estudar um pouco as perguntas da entrevista que o Chefe-cão me passou e assim estaria perfeitamente qualificada, dentro das possibilidades daquele momento. Eu também daria um polimento no meu inglês, vendo a pronuncia das palavras no Google tradutor. 

Pronto, perfeito! Perfeito? Ledo engano!

O banheiro que onde planejei trocar de roupas, estava um caos de pessoas apressadas, molhadas e um forte odor de urina tomava conta do lugar. Me espremer na cabine fazendo um esforço hercúleo para não me sujar de todo aquele líquido fétido enquanto me trocava, foi de fazer um contorcionista se orgulhar. Aliás, parabéns para você que consegue urinar do chão ao teto, é uma habilidade digna de nota!

Ao sair do banheiro, o metrô que eu planejava pegar em direção ao tão sonhado destino estava prestes a sair da plataforma. Lá fui eu fazer, pela segunda vez naquele dia, a corrida da vergonha. A diferença principal é que o metrô não fica parado se você correr. Gostaria de deixar registrado aqui os meus mais sinceros agradecimentos aos motoristas de coração puro, que param o ônibus quando veem um pobre correndo em desespero, vocês são dez!

A parte um do meu plano foi por água abaixo. Agora só me resta aguardar o próximo, tudo bem! Vamos lá, esperar... esperar... minha barriga começa a manifestar os primeiros sinais de fome, roncando alto e no pior momento possível. Olho para o lado e vejo uma vendedora ambulante com umas coxinhas de aparência duvidosa. Mas bem, como diria minha mãezinha, o que não mata, engorda. Estou com fome e não estou pensando direito, compro a coxinha. Entre uma mordida e outra o metrô chega e só então percebo: perdi um precioso tempo de estudo e pesquisa, comendo. 

"Mandou bem, Michele, talvez você não tenha um real para a coxinha de amanhã, porque pensou com buxo hoje! Parabéns! ". Me censuro. 

Não consigo sentar no metrô e mais uma parte do meu plano imperfeito, falha. Pelo menos o céu parou de chorar quando desço na estação e caminho, seguindo as placas até o Autódromo José Carlos Pace, o autódromo de Interlagos. Milagrosamente, não tenho nenhum problema para conseguir entrar na ala destinada aos repórteres, mas esta parte não é um mérito meu, porque se fosse, tenho certeza de que teria dado errado. O Chefe-cão havia facilitado minha entrada e fui recepcionada por uma garota baixinha, com estilo meio nerd e um crachá escrito Alana.

— Olá, seja bem-vinda! Por sorte você não perdeu muita coisa, estamos nos primeiros trinta minutos de treino. Muito prazer, eu sou Alana. — Diz ela, apontando para o crachá.

— Oi, me chamo Michele, sou a representante da revista O Placar. Trinta primeiros? E quantos restam? — Questiono, um pouco perdida. 

Ela me olha de lado e solta um risinho, como se eu tivesse perguntado algo muito engraçado ou absurdo.

— Mais sessenta, estamos na primeira sessão de treino livre, eles costumam durar noventa minutos. — Responde ela. — Ninguém te explicou nada antes de te mandar até aqui?

Opto por não responder. Não faço a menor ideia de quem ela seja e quais oportunidades eu posso ferrar se admitir que realmente não sei de nada. Então, pela próxima hora, eu tento prestar atenção no jogo, corrida, treino ou seja lá o que for a sucessão de voltas na pista que me deixaram um pouco tonta e enjoada.

Pensando bem, talvez não sejam as voltas, talvez eu... meu Deus, eu acho que estou com vontade de vomitar! Eu preciso ir no banheiro. Maldita seja a coxinha de aparência duvidosa. Me levanto e tento caminhar em direção aos corredores, mas antes que eu consiga, Alana me puxa pelo braço e diz a última coisa que eu gostaria de ouvir naquele momento:

— Venha comigo, está na hora, o Senhor Cooper já vai recebe-la. Separamos uma sala privada para a entrevista, o senhor Cooper não gosta muito de entrevistas, mas um favor para o Pietro, é um favor para o Pietro! Detenha-se as perguntas relacionadas a carreira, questionamentos sobre a vida pessoal devem ser evitadas, você tem trinta minutos para concluir tudo. Depois disso...

De repente, eu não estou mais ouvindo uma só palavra do que ela está dizendo, então não foi surpresa eu ficar completamente atordoada quando fui jogada em uma sala de um branco claustrofóbico, muito parecido com um camarim, ou pelo menos eu achei que fosse. 

Orientada a esperar pelo tal Senhor Cooper, fecho a porta sem trancar e começo desesperadamente a procurar um banheiro, um saco de vômito ou sei lá, um balde! Na ausência de qualquer coisa do tipo, avisto uma garrafa de vidro que penso ser água. Tem que servir! Talvez eu só precise de uma água e meus exercícios de respiração.

Um, respira. Um gole de água. Dois, inspira.

Tudo bem, talvez eu consiga segurar um pouco. 



Trampo — Gíria para trabalho.
CPTM — Companhia Paulista de Trens Metropolitanos 

Depois da CurvaOnde histórias criam vida. Descubra agora