Menininho

307 54 99
                                    


     As primeiras aulas foram estranhas. Ninguém, além da professora Mara, falou nada na sala. Parecia que alguém tinha morrido. Esse era o clima. Até mesmo a turma do fundão tava quieta. No final da terceira aula, Pedro foi chamado pra direção. Ele ficou lá durante todo o intervalo. Ainda bem, porque no pátio todo mundo tava comentando sobre o vídeo. Tive vontade de dar um soco na cara do Jean quando ouvi ele dizer pros amigos que viadinho tinha mesmo que se foder.

     — Homem com homem é nojento.

     Respirei fundo. Contei até três. Achei melhor sair de perto. Jean é um bosta. Mas não valeria a pena pegar detenção por causa dele. Me juntei à Aninha e ao Rô, que lanchavam na cantina. O papo estava mais leve. Os dois estavam falando sobre uma série que o Rô tinha assistido na Netflix.

     — Basicamente, o cara tá na merda. Tá sem grana e, por isso, tem que ficar hospedado em uma pensão esquisita, cheia de gente estranha.

     — Você falou aquela palavra novamente. — Ana abriu um bloquinho de notas e escreveu alguma coisa nele.

     — Cara, você vai ficar rica tirando dinheiro de mim! — Rô estava puto.

     — Do que vocês estão falando? Que palavra é essa? — Pergunto.

     — O Rô é viciado na palavra "basicamente". Ele fala "basicamente" pra tudo, toda hora. Nós fizemos um acordo. Toda vez que ele falar essa palavra, ganho um real.

     — E quanto ele já tá te devendo?

     — Vintão. — Aninha deu um sorriso orgulhoso.

     — Vinte?! Porra, Rodrigo. Tá na hora de diversificar esse vocabulário aí.

     — Ele não consegue. Ele sempre dorme na aula de português.

     — Cara, a aula de português dá sono. O professor é chatão. — Rô tentando se justificar.

     — Eu gosto do Seu Ernesto.

     — Claro que gosta, Aninha... — Eu disse. — Você é mó nerdona em português. Sempre tirando dez... Mas e aí, e aquele trampo? Você já começou a escrever no jornal da escola?

     — Ainda não sei sobre o que escrever. O professor Ernesto disse que tenho um mês pra entregar o artigo. Tô num bloqueio criativo.

     Rô abriu um sorriso:

     — Que tal escrever sobre professores que pegam no pé dos alunos?

     — O professor de português só pega no seu pé porque você dorme durante a aula, Rô. — Digo.

     — Você tá muito errado, Bruno. Não durmo apenas na aula de português. Durmo em todas as aulas, menos na aula de literatura. O professor Marcelo é, de longe, o melhor professor da Gaspar Miranda.

     Tive que concordar com o Rodrigo. O professor Marcelo era muito gente boa. Sem falar que era bem jovem. Era como se fosse um irmão mais velho da gente.

     — Que foi, Aninha? Que cara é essa?

     — Ai, Bruno. Deixa pra lá.

     — Tem algo a ver com professor o Marcelo?

     — Não quero falar, Bruno. Não insiste.

     Rô e eu nos encaramos. Estávamos confusos.

     — Ok. Vou falar, mas não contem pra ninguém. 

     — Pode confiar, Ana.

     Ana começou a roer as unhas, preocupada. Olhou em volta para se certificar que ninguém estava muito perto, pois não queria que os outros a ouvissem.

     — Ouvi a professora Mara e o professor Ernesto falando sobre isso na salinha do jornal... — Ana abaixou ainda mais o tom de voz. — O cara que aparece no vídeo com o Pedro é o professor Marcelo.

     Fiquei confuso. Não fazia sentido. O professor Marcelo era o professor mais legal da escola. Todos os alunos gostavam dele. Até mesmo aqueles que não curtiam literatura. Quando a professora Matilda se engasgou com a azeitona, foi o professor Marcelo que ajudou. Se não fosse por ele, estaríamos hoje sem professora de arte (o que não seria tão ruim). Se não fosse por ele, o Ernesto teria reprovado o Rodrigo ano passado. Diziam que, no conselho de classe, o professor Marcelo confrontou o professor Ernesto. Não é todo mundo que tinha coragem de fazer isso. O professor Ernesto era assustador. Como um cara gente fina como o Marcelo faria uma coisa dessas que Aninha tá falando?

     O sinal tocou. O inspetor apareceu, mandando todo mundo voltar pras salas. Aninha pediu pra gente, pelo amor de Deus, não comentar com mais ninguém sobre aquilo.

     — Tranquilo. Mas você tem certeza do que ouviu, Ana? O professor Marcelo metido nisso?!

     Aninha cruzou os braços e fez cara feia pra mim. Eu sabia que ela não era mentirosa. Mas aquela informação tinha sido demais. Eu não esperava.

     Na sala de aula, eu não conseguia pensar em mais nada. A professora Matilda falando umas coisas sobre surrealismo, Salvador Dalí, sonhos... E eu pensando no pesadelo que devia estar sendo a vida do Pedro. Olhei em volta, procurando por ele. Não o encontrei. Tive um pressentimento. Um pressentimento ruim. Mas fiquei aliviado quando vi a porta da sala se abrir. Era ele, o Pedro. Mas tinha alguma coisa errada. Alguma coisa no rosto do Pedro. Ele tava se segurando pra não chorar. O queixo engelhado e trêmulo. Além disso, o rosto todo pálido. Era como se o Pedro tivesse visto um fantasma. Algo iria acontecer. Eu tinha certeza. E aconteceu: o Pedro desmoronou. Ele se sentou na cadeira e começou a chorar. Chorou muito, me fazendo lembrar daquele menininho que passava as tardes de domingo jogando videogame comigo.

Tá tudo bem, PedroOnde histórias criam vida. Descubra agora