Fiz de tudo pra me distrair. Liguei pro Rô e pra Ana. Passamos horas fazendo chamada de vídeo. Rô falou umas dez vezes a palavra "basicamente". Ana ficou dez reais mais rica. Nunca conheci ninguém com o espírito tão empreendedor quanto o da Aninha. Ela continuava sem ideia pro jornal, sem saber o que escrever. Rô sugeriu que ela abandonasse o projeto e se dedicasse à carreira de coach financeira. Não discordei. Depois da ligação, tentei ver um filme. Mas não rolou. Aquele pensamento tava martelando na minha cabeça. Aquelas coisas todas que minha mãe tinha falado mais cedo. Eu só queria me distrair e esquecer tudo o que eu tinha ouvido. Decidi levar o cachorro pra passear. Uma caminhada me faria espairecer um pouco.
— Você nunca sai com o Lulu.
— É, mas deu vontade de sair, mãe.
— Ele ainda não fez cocô. Leva o saquinho.
— Ai, dona Selminha... — É como eu gostava de chamá-la, às vezes — Não precisa. A polícia que monitora cocô de cachorro está de folga.
Ela riu da piadinha.
Dei um beijo na dona Selma, que ainda estava deitada no sofá, vestida de camisola, assistindo TV. Peguei o Lulu e levei pra passear. Ele tava animadão. Fazia tempo que não saía pra dar uma voltinha. Todo mundo na minha casa andou sem tempo pra ele nas últimas semanas, coitado. Minha mãe sempre medicada. Eu tinha passado o recesso escolar na casa da vó. E meu pai o tempo todo trabalhando. Porra, eu não queria pensar no meu pai. Afastei aquele pensamento. Era preciso me distrair. Levei o Lulu pra uma pracinha que ficava a três quadras da minha casa. Lá tinha uma rampa de skate que atraía todos os moleques do bairro. Era ponto de encontro da galera. Eu não andava de skate, mas curtia ver o pessoal fazer manobra.
Quem sempre tava por ali era o Jean. Ele até podia ser um filho da puta. Mas era um filho da puta bom no skate. E também desenhava pra caralho. A professora Matilda sempre elogiava o cara. Um merda, mas talentoso. O problema do Jean só era uma coisa: o pai dele. O seu Tobias era pastor na igreja que minha avó paterna frequentava. Eu conhecia bem. Um dos filhos mais velhos dele fez carreira militar. O outro entrou pra política. Aí teve um escândalo. Todo mundo falando que o irmão vereador do Jean era corrupto. O jornalista que fez a denúncia foi assassinado. Ouvi minha vó comentar com alguém no telefone que seu Tobias tava envolvido com o homicídio. Ela tava com medo de aquilo abalar sua fé. Mas não abalou. Ela continuou acreditando em Deus, mas deixou de acreditar no seu Tobias.
O Jean ser um bosta tinha tudo a ver com o pai dele, que era um bosta ainda maior. No fundo, eu não queria acreditar nisso. Eu não queria acreditar que herdamos os erros dos nossos pais. Eu não queria ser como o meu pai. Eu não queria ser uma pessoa que machuca os outros. Fiquei pensando nas pessoas que ele fez sofrer. A minha mãe, em casa, o dia inteiro deitada. A mãe do Pedro, que teve que ouvir que o filho tinha algum problema porque era afeminado. Eu nem podia imaginar como a dona Luiza se sentiu ao ouvir aquilo. Também não podia imaginar como dona Luiza tava lidando com aquelas coisas todas acontecendo com o filho dela.
Eu queria ser amigo do Pedro pra ter a liberdade de ir até a casa dele e dar um abraço. Um abraço nele e na mãe dele. Aí eu comecei a pensar que seria estranho se, do nada, eu aparecesse por lá. "Oi, dona Luiza. Sou eu. O filho do cara que foi idiota com o Pedro. Posso entrar?". Ela bateria a porta na minha cara. Certeza.
Já tava anoitecendo. Peguei o Lulu no colo. Atravessei a faixa de pedestre. Dei de cara com o Jean, segurando o skate, vindo na direção oposta. Ele me encarou por dois segundos e logo em seguida cuspiu no chão. "Ok, Jean, eu também não gosto de você", foi o que pensei. Cada um de nós seguiu o seu caminho.
Caminhei por alguns minutos e, quando me aproximei da rua em que morava o Pedro, decidi passar por ali. Era o caminho mais longo até a minha casa. Eu sabia. Mas não me importava. Quando já estávamos na frente da casa amarela, número cinquenta, Lulu latiu. Tinha uma pessoa na varanda, no escuro. Era dona Luiza, fumando na cadeira de balanço. Pensei em acenar, mas talvez ela não me reconhecesse. Ou pior, talvez não quisesse responder. Dei mais alguns passos rua abaixo. Mas aí ouvi sua voz, atrás de mim.
— Como está a Selma?
Sim. A mãe do Pedro estava falando comigo.
— Tá bem! — Menti. — E a senhora, como tá?
Ela não respondeu. Mas pediu que eu fosse até a varanda. Lulu continuava latindo.
Fiz como dona Luiza pediu e me aproximei. Tudo escuro. A lâmpada da varanda estava desligada. Apenas a ponta acesa do cigarro iluminava o rosto da mãe do Pedro. Uma luz fraca, mas o suficiente para perceber que tinha tensão na face da mulher. Uma nuvem de fumaça escapou pela sua boca.
— Você cresceu, menino...
— Então a senhora lembra de mim?
Ela sorriu. Os dentes brilhando na escuridão.
— Assim que te vi, eu lembrei.
— Quieto, Lulu. — O cachorro não parava de latir.
— E seu pai, como está? — Ela colocou o cigarro novamente na boca.
Tentei olhar pra dentro da casa. A porta tava semiaberta.
— Hein, menino?
— O que a senhora disse?
— Perguntei como está o Ricardo.
— Tá bem, eu acho.
— Você se parece muito com seu pai...
— O Pedro tá aí?
— Você ouviu o que eu disse, menino?
— É que eu queria falar com o Pedro.
— Eu disse que você se parece muito com seu pai.
— Eu ouvi.
— Você gosta?
— Do quê?
— De se parecer com o Ricardo...
— Eu... Eu não sei. Acho que já vou indo, dona Luiza. É melhor.
O sorriso no seu rosto se alargou ainda mais. Ela se mexeu na cadeira, como se quisesse se levantar. Nesse momento, houve um barulho metálico. Uma coisa brilhosa caiu no chão, ao lado da mulher. Uma faca. E, antes que eu pudesse ter qualquer reação, a mulher, a dona Luiza, se jogou no chão. Quando se levantou, tinha a faca nas mãos, apontando pra mim.
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Tá tudo bem, Pedro
RomanceApós ter um vídeo íntimo seu divulgado na internet, Pedro terá que aprender a lidar com o bullying e homofobia. Para isso, contará com a ajuda de Bruno, seu colega de turma. Juntos, os adolescentes tentam encontrar uma maneira de tornar a vida leve...