Acta Diurna

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     Depois de acalmar a esposa, seu Otávio a levou pro quarto. A mulher não se parecia em nada com a dona Luiza que conheci na minha infância. Fisicamente, era a mesma. Mas tinha uma parada diferente. Não sei. Acho que eram os olhos. Ou o sorriso. Ou o jeito como segurava o cigarro. Enfim. Não era a mesma. Depois de trocar a lâmpada da varanda, o pai do Pedro explicou:

     — Vieram aqui e jogaram pedra na casa. — Apontou pra janela quebrada —Gritaram ofensas também. Chamaram o Pedro de... Você sabe.

     O homem guardou a faca em uma das gavetas do armário.

     — Você deve conhecê-los, Bruno. Ficam na praça a três quadras daqui. Um deles é filho do Tobias. O pastor Tobias.

     — O Jean. Conheço.

     Seu Otávio se sentou à mesa e pediu que eu fizesse o mesmo. Antes de me sentar, coloquei Lulu no chão. Ele se deitou. Tava mais tranquilo.

     — Luiza é muito protetora. — seu Otávio sorriu, triste — Ela passou a ficar de prontidão na varanda, de olho em todo mundo que se aproxima. Eu não sabia do detalhe da faca, claro... Peço que a desculpe por isso.

     Eu disse que entendia a situação da dona Luiza. O que eu não entendia era porque merda o Jean e os comparsas tinham jogado pedra na casa do seu Otávio.

     — Provavelmente porque meu filho deu um soco em um deles. No tal Jean.

     — O Pedro deu um soco no Jean?! — Eu realmente tava muito surpreso. E feliz.

     — Sim. E foi um dos bons. Bem no meio da barriga. — Seu Otávio sorriu — Juro. Não sou uma pessoa que gosta de violência. Mas aquele moleque tava pedindo.

     — O Jean é um merda. Mereceu.

     — Mas e você, Bruno? Tem problemas na escola?

     — Uma vez a professora Matilda me mandou pra direção porque fiz uma caricatura dela.

     — Matilda não gostou do desenho?

     — É que ela tava sem roupas... na caricatura.

     — O nome disso é liberdade artística, não? Ela é professora. Deveria saber. — Seu Otávio riu, mas logo depois ficou sério. — E os outros professores, Bruno? São mais legais? Ou são todos como a Matilda?

     — O Ernesto é o mais chato. O mais legal é o professor Mar...

     Porra. Esse nome não. Mas tarde demais. As sobrancelhas do seu Otávio se ergueram, como se ele tivesse mesmo esperando que eu falasse do professor Marcelo.

     — O Marcelo? De literatura? Você gosta dele?

     — Ele é bem próximo da galera. Não sou apenas eu que gosto.

     — Eu sei, Bruno. Pedro também fala bem dele. — Seu Otávio coçou o queixo, olhou pro teto e depois olhou pra mim, fixo — Bruno, preciso saber se posso contar com você.

     Eu não disse nada. Apenas balancei a cabeça, positivamente.

     — Luiza e eu estamos muito preocupados... — O queixo do homem tremeu. Ele tava se segurando pra não chorar. Era estranho ver um homem como o Seu Otávio prestes a cair no choro. — Luiza não achou uma boa ideia o Pedro continuar indo à escola. Eu nunca concordei com ela. Mas sempre achei que o melhor a se fazer seria enfrentar a situação como ela é. E, pra mim, a real é que o Pedro não deve nada a ninguém naquela escola. Não tem porque ele se envergonhar de nada. — Uma lágrima escorreu pelo rosto do homem, mas ele continuava muito sério. — Pelo contrário, tem outras pessoas na Gaspar Miranda que têm que se envergonhar do que fizeram com meu filho. — O punho do seu Otávio se fechou — Mas o Pedro não. Ele não. O Pedro é vítima. — Seu Otávio enxugou o rosto — Tem uma coisa que preciso saber de você, Bruno.

     — Eu não tô envolvido com isso, seu Otávio.

     — Sei disso. Não tô dizendo o contrário.

     — Inclusive, eu queria muito falar com o Pedro. Acho uma injustiça tudo o que tá acontecendo com ele.

     — Só quero saber uma coisa de você, meu filho.

     — Pode perguntar.

     — Desconfiamos que o vídeo do Pedro se espalhou primeiro em um grupo no whatsapp.

     — ...

     — Queremos chegar à pessoa que fez isso.

     — ...

     — Sabemos que o nome do grupo era Acta Diurna.

     — Acta o quê?

     — Diurna.

     — ...

     — Você já esteve ou conhece alguém que fez parte do grupo, Bruno?

     — Nunca ouvi falar. Desculpa.

     Seu Otávio respirou fundo.

     — Tudo bem, Bruno.

     — Desculpa, seu Otávio.

     — Não precisa se desculpar.

     — ...

     — Você disse que queria falar com o Pedro?

     Balancei afirmativamente a cabeça. Seu Otávio se levantou e me guiou até os fundos da casa. Lulu seguiu a gente. No quintal, o homem apontou pra um aglomerado de árvores, que ficava na extremidade do terreno, antes do fim do muro. Tinha uma luz vermelha no meio das folhagens das árvores, que eram ipês-amarelos. Seu Otávio voltou pra dentro de casa. Ouvi a porta bater. Lulu correu em direção à luz. Fui atrás. Enquanto me aproximava dos ipês, ouvi uma música. Uma música calma, instrumental. Quando cheguei bem perto, vi uma escada de corda presa ao caule de um dos ipês. Olhei pra cima e a vi. Ela, uma casa na árvore. De dentro, saía uma luz vermelha. Uma luz que escapava pelas brechas entre as paredes de madeira. Decidi subir. No chão, Lulu ficou me olhando.

Tá tudo bem, PedroOnde histórias criam vida. Descubra agora