Capítulo 16

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Dizem que se você anotar todos os dias os seus sonhos, chegará um momento em que irá poder dominá-los. Dizem, ainda, que algumas pessoas dentre nós "nascem" com dons sobrenaturais, provindo de Seres Poderosos - dependendo da religião - os quais podem sonhar com o passado ou futuro. Para Abner, essas regras não lhe eram exigidas. Desde que os eventos relacionados a garota vermelha começaram a acontecer, ele via em seus sonhos, todas as noites, relapsos do passado, muitas vezes, com vítimas do acidente de Brumadinho minutos antes de tudo acontecer. Os piores deles eram quando as pessoas morriam.

No entanto, naquela noite em especial, Abner deitou a cabeça no travesseiro esperando que, pelo menos uma vez na vida, sua ligação com a garota vermelha lhe ajudasse a ver o futuro. Ele não viu. Não era como se pudesse escolher. Mas ele pôde dominar o sonho, e desejou que sua mãe melhorasse a ponto de não precisar ir para a clínica de reabilitação no dia seguinte e que não precisasse se fundir a nenhum Solari. Sua utopia perfeita poderia ter durado uma eternidade, se não fosse o despertador impertinente às seis da manhã.

- Mãe... - Abner balbuciou sentindo os primeiros raios do dia no rosto que já não era mais espinhento.

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A última mala foi lançada no bagageiro do táxi. Agora era fato, Cora Maldonado realmente ia se internar numa clínica de reabilitação para alcoólatras. Seu hábito de beber tinha evoluído aos poucos até chegar ao ponto mais crítico: estar o tempo todo embriagada. A mulher que um dia tinha conseguido não só criar o filho sozinha por oito anos, mas também comprar uma casa própria antes dos trinta, agora estava totalmente perdida sobre camadas e camadas de desespero. Eis a razão pela qual Cora tomara aquela decisão extrema.

Os olhos do filho pediam que ela abandonasse essa ideia. Algo neles dizia que eles conseguiriam sozinho. Cora não cedeu. Antes que a melancolia se massificasse no ar e nesta narrativa, ela entrou no carro franzino e, logo após se despedir do filho, partiu.

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As bordas da passagem na mão de Abner brilhavam. Faltava menos de uma hora para o ônibus sair em direção a Belo Horizonte. Um pouco antes, havia feito as malas no já antigo apartamento deles, pôs suas poucas roupas e sapatos e os objetos pessoais que havia trazido consigo. Não precisou se preocupar com a mudança, sua tia Marta de bom grado pagou um pessoal autorizado para isso, Abner esperou que todo o caminhão fosse carregado para trancar a porta. A única coisa que deixaram para trás foi aquele sofá velho que veio junto do imóvel quando compraram, Abner não sabia de quem antes tinha sido ou como chegou ali, as únicas memórias que era ver sua mãe nele, afogada em decepção. Tudo havia ido embora. O que seria das vidas deles a partir de então?

Abner esperava, pacientemente, sentado em um dos bancos da rodoviária com a garota vermelha ao seu lado. Naquele dia em especial, ela estava mais parecida com um humano do que o normal. A fina sobrancelha vermelha estava em linha reta, unida num vinco no meio da testa. A boca curvada demonstrava o desespero para falar algo. Aquela era uma terrível e típica expressão de um preocupado.

- Você não precisava ter vindo. - Abner comentou.
- Digamos que eu precisava sim. - Ironizou a garota vermelha - Estamos ligados, vou com você para todos os lugares, embora as vezes não perceba. E também não é como se eu tivesse uma casa aqui na Terra.

Abner nunca foi de ter muitos amigos, logo, não tinha muitas conversas ao longo do dia. Porém, aquela de fato era uma das mais singular que já tinha tido. Perguntou-se como era possível sentir uma conexão com a Solari se não via nada real e concreto para isso, como quando viu uma representação de um barbante vermelho ligando dois corações. No entanto, outra coisa batucava mais em sua mente. A garota vermelha não era humana, mas caracterizava, de longe, a personificação de amiga mais próxima que tinha. Estranhamente esperava que ela perguntasse como ele se sentia com tudo aquilo.

Eu Nasci Nas EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora