Capítulo 20

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A Solari e sua duplicata percorrem quase 700 quilômetros até alcançar a capital paulista. Embora a garota vermelha pudesse voar, Abner se recusava a subir em suas costas como se ela fosse um animal de carga, tampouco achava uma boa ideia, porque ao contrário do que os filmes e séries passam a entender, seria quase impossível saber para onde ir sendo que lá em cima você só veria árvores e construções. Saber voar não é sinônimo de ter uma bússola e um GPS no crânio.

Abner queria o quanto antes chegar a Brumadinho e descobrir o que Ágata tentara dizer a eles. Se um outro Solari veio a Terra, o que tinha haver com ele? Por que a garota vermelha foi mandada para cá com a finalidade de encontrar esse ser? Ela não deveria apenas se fundir?

- Num dia você decide qual tênis é melhor para ir à escola e no outro você tenta descobrir o futuro de um ser celestial. – Cochichou ele baixinho.

- É... – A garota vermelha soltou o monossílabo como se entendesse do que Abner estava falando.

A carona deles deu solavanco no veículo devido um buraco na estrada. Abner preferiu não pegar um ônibus, pois bem, eles tentaram prendê-lo em uma rodoviária! Nunca se sabe se, porventura, eles não teriam um radar especial que detectava Solaris invisíveis. Encontraram, então, um verdureiro¹ que partia para Minas Gerais. Acomodaram-se na parte de traz do caminhão vazio, cheirando a salada de repolho. O motorista era imprudente.

- Por que vocês se mudaram para São Paulo?

Quem perguntou isso foi a garota vermelha. Até aquele período da viagem ela não tinha dito nada, a não ser quando Abner lhe explicou um plano para encontrar o outro de seu povo. Ela encarava o céu estrelado sentindo uma saudade imensa do gélido e reconfortante espaço. Ao contrário desse planeta, lá é silencioso, misterioso e ao mesmo tempo verdadeiro. É o que é e não se pode defini-lo. Se a perguntasse o que mais gostava nele diria que era a solidão.

Por isso, não entendia tamanha dúvida dos humanos, o estar só ou acompanhado. Tampouco sabia porque precisavam tanto um do outro. Quando viu a mãe de Abner se afundar num abismo do subconsciente por causa de um simples reencontro, tentou encontrar o fator determinante dessa característica da humanidade.

- Fizeram da nossa vida um inferno. – comentou Abner, amargo.

- Por quê? – a garota vermelha olhou para ele, que balançava levemente no ritmo do caminhão.

- O meu pai...

Abner pensou um pouco. Nunca descortinara tamanha mágoa a ninguém, nem mesmo para sua mãe. Temia colocar para fora aquele monstrinho que o consumia por dentro lentamente e fazer dele um Tiranossauro Rex do problema. O medo lhe paralisava. Mas... custava contar a garota vermelha? Certamente ela não contaria a ninguém e tampouco se lembraria posteriormente. Ela é só uma extraterrestre esquisita, ora!

Ele suspirou antes de continuar:

- Quando minha mãe e eu o vimos em Brumadinho, tudo desandou. As pessoas descobriram sobre nós e faziam diversas matérias especulando a "nossa participação na vida de Michelangelo", – fez as aspas com os dedos – Eles julgaram a minha mãe, disseram que ela foi uma aproveitadora sem sucesso, porque eu nasci assim que a empresa do meu pai começou a ficar famosa, mas não fui reconhecido.

Daquele momento em diante, os olhos cor-de-oceano do garoto derramavam lágrimas que aqueciam seu rosto no frio.

- O pior de tudo foi quando ele me usou para tentar provar sua inocência com relação ao acidente. Ele afirmou em alto e bom som que, abre aspas, "Não faria dano algum a um parente meu de sangue. Eu sabia que aqui na comunidade Córrego do Feijão haviam pessoas que fazem parte da minha família. Preservar a vida de quem amo é mais importante que qualquer zero na minha conta."

- Você lembra de tudo isso da fala dele? – perguntou mais uma vez a Solari.

- Tenho memória fotográfica².

E aquele infortúnio, às vezes, era insuportável. Abner se lembrava de cada momento difícil de sua vida com riqueza de detalhes, como se tivesse vivido ontem. Lembrava de quando machucou o dedo no balanço do playground da creche, bem como de todas as surras que levou do seu padrasto. Ainda, os rostos de todas as pessoas que morreram no acidente de Brumadinho, estampados no jornal. Nem todas as profissões do mundo beneficiadas por essa caraterística rara valiam a pena. O chá de sumiço que ele queria dar era nas suas memórias.

- Não se preocupe, tudo vai melhorar. – A garota vermelha acolheu a mão do humano.

Aquele era o primeiro toque que os dois tinham de verdade. Abner sentiu que seu coração pulou uma vez. Observou os olhos agitados dela, talvez analisando as expressões que ele tentava, em vão, esconder. A sua aparência quase humana queria pregar peças no cérebro do guri. Se pudesse ver o peito oco a sua frente...

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| N O T A S |

¹ Verdureiro: termo comum usado para caminhões que carregam verduras, os mais comuns são os de repolho, de uma cidade a outra ou de um estado para o outro. [Fonte: desconhecido]

² Memória eidética, popularmente conhecida como Memória fotográfica, é a capacidade de se lembrar de coisas vistas, com um nível de detalhe perfeito. Eidética vêm do grego εἶδος ('eidos'), significa 'visto', e atualmente é usado para descrever algo marcado por ou envolvendo memórias extraordinariamente precisas e vívidas, especialmente as visuais. [Fonte: Wikipedia]

N° de palavras: 924

Eu Nasci Nas EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora