CAPÍTULO 6

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O filho de Cora a encontrou dormindo no alojamento improvisado.

Parecia que ela não descansava a dias e sua expressão facial demostrava uma mulher cansada. Ele afagou os cabelos da mãe carinhosamente e observou o subir e descer do seu peito. Percebeu que a mulher dormia com a mão sob a cabeça e na tentativa de evitar uma possível dormência vindoura, ele a tirou com cuidado para não acorda-la. Foi quando percebeu um enorme hematoma no rosto de Cora.

Confuso, descobriu o corpo magro de sua mãe e viu mais algumas manchas roxas por toda a extensão do braço. Olhou de perto e viu um corte na sua boca. O garoto enfureceu-se grandiosamente. Mais uma vez o marido de Cora havia agido como um cretino. Porém, daquela vez ele não o deixaria em pune.

– Eu vou matar aquele desgraçado! - Praguejou baixo, levantando-se.

Antes que pudesse se afastar, Cora agarrou seu braço e pediu com um tom de sonolência:

– Por favor... Não faça isso!

–Mãe, olha o que ele fez com a senhora!

– Não diga nada, você sabe o que acontecerá.

Ele bem sabia que se confrontasse o marido de Cora, certamente apanharia. De novo. Outrora, o menino já tentou defender a honra de sua mãe. Sempre que o homem bebia, perdia a noção de respeito e agredia sua mãe. Ele não lembra quando isso começou e se sente culpado todas as vezes, por pensar ser apenas um garoto incapaz de salvar sua mãe. 

Naquele momento, porém, a raiva tomou conta dele, não importa se seu padrasto equivalia a dois dele em tamanho e talvez três em força, ele faria alguma. Chega de aceitar. A culpa por ele ser um agressor de mulheres não podia ser atribuído a bebida, pois se assim fosse, todo mundo que bebesse seria agressivo. Aquele homem imundo era assim. Sua verdadeira face não podia ser aquela de bom esposo que se arrependia de um "surto inconsciente". Era sua, certamente, a face do desprezo e da falta de amor. Um face que estava escancarada para todos verem.

De repente, o filho de Cora desejou que o seu padrasto agressivo fosse descoberto pelas pessoas. Por outro lado, se isso acontecesse, o que pensariam de sua mãe? Diriam que ela era uma mulher fraca por aceitar um relacionamento tão abusivo que afeta até mesmo seu filho? A veriam como "submissa" ao ódio e à violência porque o amava ou não queria perder o progenitor da casa? Será que julgariam sua mãe como julgam todas as vítimas?

– E se as pessoas descobrirem? – O garoto espinhento perguntou, preocupado.

– Se alguém perguntar, diga que estou doente. Até irmos embora, me esconderei aqui.

É isso. Esconder-se. Abner começou a relembrar as escadas que tinha na Igreja, afinal, precisava dar explicações pela sua mãe.

✦ ✦ ✦

A coisa anormal se aproximou da lama espessa.

Viu troncos de árvores, pedaços de concreto e outras coisas que nunca tinha visto antes. No entanto, como sabia o nome de todas aquelas coisas misturadas com a lama? Num relance, viu aquele lugar outrora perfeito. Era como se tivesse voltado no tempo. Aquele largo rastro de destroços era, na verdade, um rio e mais acima uma vila.

Foi então que ela sentiu um aperto dentro de si e caiu no chão, atordoada. Sujou-se de lama e sentiu uma sensação insuportável. Sufocante. Não era como a dor que a água lhe provocava. Era como se estivesse perdendo o ar. De repente não conseguiu respirar. Agarrou a parte superior do corpo tentando ajudar na inalação.

Tudo escureceu e clareou numa fração de segundos. Já não estava sobre a lama, estava dentro dela. Subia a superfície e voltava para fluido marrom repetidamente, numa luta constante entre sobreviver e se livrar das forças que a puxava para o fundo. Era agonizante, parecia que iria morrer afogada. Mas... O que é afogar?

A coisa anormal não sabia quanto tempo ficou assim, se durou um ou dez minutos. No entanto, quando acabou, estava intacta sobre a lama como se nada tivesse acontecido. Soube de imediato que tinha sido apenas uma memória póstuma de outro ser. Voltou a respirar ofegantemente ao mesmo tempo que levantava com dificuldades.

Observou o perímetro e encontrou um ser estirado sobra uma tábua. Ambos não tinham uma parte sequer sem lama. Ela aproximou-se deles e estudou com cuidado. À vista disso, reconheceu a criatura, era um ser humano. Nunca tinha visto um tão de perto antes. Pegou-se imaginando como era tocar na pele fina bem como ouvir os sons produzidos por ele.

Encostou os pés na perna do humano temendo que a lama causasse sufocamento de novo. No entanto, não causou.

Aproximou-se do rosto e assustou-se com a criatura se remexendo. De repente ele balbuciou algumas coisas. A princípio, a coisa anormal não soube interpretar a língua humana, pois vagamente lembrava que havia quase sete mil delas totalmente diferentes uma das outras. Ouviu cada palavra. Subitamente caiu novamente compreendendo o significado.

– A barragem estourou... Por sua causa.

✦ ✦ ✦

Sobre a mesa de Michelangelo vários papéis estavam espalhados desorganizadamente. Minutos atrás, antes de chegar em casa, o advogado lhe entregara um amontoado de planilhas, gráficos e tópicos complexos que demostravam as medidas vindouras que a empresa tomaria além das que aparentemente já estava realizando. Em boa parte daquele documento reconheceu partes de sua própria autoria, meses atrás elaboradas. Era uma composição tão perspicaz que ele se admirou com seu pessoal e começou a questionar-se se teriam feito algo assim então pouco tempo.

À vista disso, Michelangelo soube que não deveria ter dito aos acionistas um elaborado "não sei o que farei". Estava mais que nítido o posicionamento e a capacidade que tinham de lidar com o desastre. E, de repente, o presidente-chefe inquietou-se. Olhou a Bolsa de Valores no monitor por alguns minutos. Ligou a tevê e assistiu ao que diziam sobre ele. Revirou gavetas atrás de conhaque. Vestiu um moletom folgado. Alcançou seu álbum velho de fotografias.

Tocava cada uma delas como se tivesse um portal com energia suficiente para transporta-lo temporalmente. Quis ser o Michelangelo Berson de quinze anos antes. Haveria outro alguém que lhe diria palavras inefáveis? Ora, tamanho passado era aquele que ainda mexia com ele. Estaria alucinando ou sob efeito do álcool? Ele precisava dormir, pois no dia seguinte, na companhia do advogado, sobrevoaria a região do acidente. Deveras, tomou remédios contra insônia.

Ele poderia já ter a encontrado, seu dinheiro lhe permitia quase tudo, se não tudo, mas não o fez. Talvez o medo de saber que ela estava melhor que quando antes juntos ou de ainda ser controlado por aqueles sentimentos o impediam. Michelangelo era tido por tantos como alguém impenetrável, mas se o mundo o visse ao lado daquela mulher, certamente dar-lhe-iam como desaparecido e um sósia seria inventado.

Descansou a cabeça no travesseiro. O presente estava bem na sua frente e ele ainda queria olhar o passado. Malditas correntes emocionais! Esqueça-as! Apagou a luz do abajur.

Alguns valores que estavam nos documentos do advogado crepitaram no ar, à vista do empresário, e ele pensou como sua empresa era grande o suficiente para custear tantos zeros. Fechar parcerias e carregar títulos honrosos em rankings mundiais começou a vir a sua cabeça. Depois do alto preço que pagou renegando vontades, vivendo uma vida de privações, realmente encontrara ruínas? Se eu ao menos tivesse dito não. Lamentou consigo mesmo. De fato, deveria tê-lo feito, mas ele tinha convicção de que era bom para os negócios, afinal, aquelas minas¹ eram preciosidades brilhando. Mais uma ideia não poderia jazer na porta das oportunidades.

Levantou-se. Revisou mais uma vez os papéis e organizou-os na pasta novamente. Fez anotações, pesquisas e ligações ao advogado. Buscou na cozinha uma xícara de café e não foi dormir como sua esposa lhe pedira. Permaneceu no escritório até ser quatro horas da manhã.

Uma miúda e desajeitada preocupação com a empresa brotava nele então.

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N O T A S

1350 palavras

¹ complexo de minas conhecido como Minas do Feijão, em Córrego do Feijão, bairro rural do município de Brumadinho (Fonte: Wikipedia)

Eu Nasci Nas EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora