Charlottown

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- Oh, hoje não foi um dia encantador, Diana? - perguntou Anne, fechando a porta do aposento que elas dividiam e lembrando-se das risadas estridentes e dos gritos histéricos das meninas quando elas receberam, através de uma carta muito cortês, seu primeiro convite para um evento social noturno na cidade: o recital da família Montgomery. Isso havia exaltado-as tanto, que a Sra. Blackmore tivera que interromper seu crochê e ir até a sala perguntar que diabos estava acontecendo! As meninas haviam ficado incrivelmente felizes, apenas isso, sentindo-se mais moças que nunca, e Lily divertia-se horrores com seus exageros, ela que sempre fora tão contida.

- Ah, sim. Presumo que tenha sido... - murmurou Diana em resposta, pressionando seus lábios rosados em uma linha fina e desgostosa. Ela estava sentada em frente à penteadeira com um semblante cansado. Ambas já estavam com suas camisolas e os cabelos penteados; era tarde e no dia seguinte, conheceriam Queen's.

Lá fora, estrelas salpicadas no céu escuro e sem nuvens faziam companhia a uma enorme lua cheia, cujo os feixes de luz prateada e suave alcançavam o quarto através da janela aberta. Anne, ao notar uma pontada de tristeza na voz da amiga, se aproximou dela de mansinho.

- O que foi? Não está feliz aqui? - perguntou, preocupada, olhando para Diana através do espelho da penteadeira e colocando suas duas mãos nos ombros dela em um gesto de apoio e carinho.

- Estou feliz, Anne. Só me sinto... perdida. Em Avonlea, eu sabia o que precisava fazer: obedecer aos meus pais. E eu sabia firmemente o que queria fazer: desobedecê-los. Não apenas pelo prazer de ser do contra, eu realmente queria continuar meus estudos e vir para cá com vocês! Mas agora... estou tão...

- Já entendi tudo, Diana! - Anne a interrompeu, indo em direção a cama. - Venha, sente-se aqui comigo. Uma das coisas boas de sermos espíritos irmãos é que palavras não são assim tão necessárias entre nós. Como aquela vez em Avonlea quando a Minnie May ficou doente e o Matthew foi chamar o médico, e eu sabia disso, sem que precisássemos trocar nenhuma palavra sequer! Quero que saiba: eu sei exatamente como você se sente agora.

Ainda que com hesitação e sem dar muito crédito às palavras de Anne, Diana a obedeceu, e elas se sentaram de pernas cruzadas uma de frente para a outra na cama ao lado da janela, com seus joelhos enconstados.

Então, Anne apagou a luminária. Ambas ainda não haviam se acostumado totalmente com a eletricidade na cidade e amavam a ideia de ter um quarto iluminado por lâmpadas e não por velas, mas naquele momento elas não seriam necessárias.

Agora, a única luz que ousava entrar no cômodo vinha lá de fora, a esbranquiçada e leitosa, porém forte, das já citadas lua cheia e suas estrelas. As penumbras escorriam pelo chão do quarto e pelos rostos próximos daquelas duas amigas, formando sombras e ilusões.

- Por que apagou a luz? - perguntou a garota cujo cabelo era tão escuro quanto o céu daquela fatídica noite, e continuou em tom de reprimenda: - Não me diga que vai começar a inventar histórias de fantasmas outra vez! Você sabe como ficamos com a floresta assombrada.

- Não é nada disso! - Anne riu. - É só pra dar uma luminosidade mais romântica. A lua está linda hoje.

- Por que? - perguntou a outra com desconfiança. Anne pegou uma das mãos frias dela e apertou de leve seus dedos. Limpou a garganta, colocou seu cabelo ruivo para trás dos ombros e uma mecha rebelde bem presa atrás da orelha, como se se preparasse para um discurso. E então começou, com olhares e fisionamias tão expressivas como sempre haviam sido, gesticulando tanto com a mão livre quanto com a voz:

- Em Avonlea, você tinha uma motivação, Diana! Você sabia o que queria e iria atrás disso, independente de seus pais. Você se lembra do nosso lema? "Tantos dias, para abrirmos nossas asas, e voarmos". Seria quando viríamos para cá, lembra? Todos os dias era esse o lema que repetíamos, e era o que almejávamos do fundo dos nossos corações! Você se sente perdida agora, pois perdeu parte de sua motivação, já que conseguiu o que queria. Mas imagine! Oh, imagine só, quantas aventuras teremos esse ano! Quantos convites receberemos! Ah, imagine então como será o dia de amanhã! O recital da família Montgomery! Como será nosso ano letivo na Queen's! Melhor ainda: pense no que vai acontecer depois! Já estamos voando... Mas poderemos voar ainda mais alto! Sabe, o lado bom de ter ambições, é que quando conquistamos uma, sempre aparecem outras brilhando ainda mais!

- Tem razão, Anne! - exclamou Diana com um sorriso de admiração e com os olhos repentinamente tão brilhantes quanto os da outra garota.

- Já sei do que precisamos! - a ruiva continuou, iluminando-se ainda mais, se é que isso fosse possível. - Um novo lema. Deixe-me pensar um segundo...

Um silêncio magnético se estendeu por quase um minuto, e quase conseguíamos ouvir as engranagens girando dentro da cabecinha mirabolante de Anne enquanto Diana a olhava com ansiedade. Mas esta calmaria logo foi interrompida por tão abruptas exclamaçõs, que Diana deu um pulo, e em seguida um sorriso enorme:

- Já sei!!! - Anne arquejou. - Oh, é tão bonito que poderia me fazer chorar! Ande, repita depois de mim: ..."Um ano, para que possamos subir de nível, e voarmos ainda mais alto. Tocaremos as nuvens, tocaremos o sol Diana!, e continuaremos sempre juntas, como pássaros companheiros livres."

- Ah, é maravilhoso! - exclamou Diana. Ela agarrou as mãos da outra e repetiu aquelas gloriosas palavras com toda emoção que conseguiu expressar, concluindo com um sussurro amoroso: - Era exatamente disso que eu precisava. Obrigada Anne. Não sei o que eu faria sem você.

Diana a puxou para um longo abraço, muito mais certa sobre a escolha que havia feito de ir para Charlottown e muito mais preparada para amanhã: o primeiro dia delas como alunas na Queen's Academy.

***

Anne Shirley-Cuthbert, Diana Barry, Ruby Gillis, Josie Pye, Tillie Boutler e Jane Andrews estavam há no mínimo 10 minutos, paradas lado a lado e em silêncio em frente ao prédio, olhando para ele levemente catatônicas, como se olhassem para o mais intimidador acontecimento de toda a vida delas.

Provavelmente era mesmo.

- Estou com medo. - sussurrou Ruby com sua voz melosa, a primeira a falar desde que haviam chegado, o que despertou as outras do pequeno transe.

- Não seja tola, Ruby! - ralhou Josie com irritação, mas igualmente assustada embora nunca fosse admitir. - Pra que ter medo de uma escola?!

- Acho que deveríamos entrar. - balbuciou Tillie, fazendo-se de corajosa. O que ela quis dizer foi: "Acho que deveríamos desmaiar".

- Sim, deveríamos. - incentivou Diana, mas não deu um passo sequer para frente. Apenas semicerrou um pouco mais os olhos em direção à escola, depois os arregalou, como se tivesse visto monstros saindo pelas janelas, e completou apressadamente: - Ou talvez pudéssemos esperar mais uns cinco minutos.

E todas as outras concordaram com veemência.

Mas quando os sinos badalaram indicando que os alunos deveriam ir para suas aulas, não havia mais escapatória.

- Não tenha medo Ruby. Vai dar tudo certo. - disse Anne segurando sua mão, a mais empolgada (embora com tanto medo quanto) entre suas amigas. Ruby apenas assentiu, mas Anne percebeu que suas palavras não tinham surtido muito efeito. Mais alto, e dando um passo a frente, ela tentou mais uma vez: - Vamos lá pessoal! Somos de Avonlea! Suportamos aquele conselho assassino, aquele golpe do ouro, o Sr. Phillips, a língua afiada de Rachel Lynde e a severidade das mães da alta sociedade! Nós damos conta!

Silêncio.

Então, Diana também deu um passo a frente:

- Nós damos conta!

E logo todas elas já sorriam encorajadas - embora ainda com um leve frio na barriga, é claro - e entraram na Queen's College de cabeças erguidas.

Continuação de Anne com EOnde histórias criam vida. Descubra agora