Gilbert Blithe e o artigo de Anne

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Gilbert Blithe esperava sozinho (como já havia se acostumado) o trem de Avonlea, sentado no banquinho de madeira do lado de fora. Ele acompanhava com o olhar as dezenas de pessoas que passavam a sua frente, apressadas e segurando suas maletas, mas não via realmente ninguém.

Era uma tarde fresca e nublada em Toronto, levemente triste. Mas ele não se importava: estava feliz por voltar para a casa. A verdade é que embora estivesse em Toronto há meses, ainda não tinha se acostumado. Gilbert amava estudar medicina. Mas a saudade era quase insuportável.

Ele pensava em Anne. Pensava que a veria novamente. As cartas que vinham trocando, eram ora divertidas, ora esclarecedoras, ora apaixonadas. Mas o rapaz não sabia como seria quando se vissem novamente, quando se olhariam pela primeira vez depois daquele beijo. Como deveria agir?

Apesar da confusão, seu semblante exibia um olhar sonhador e um sorrisinho bobo quando pensava naquela garota ruiva da escola que costumava odiá-lo. Mas parte dele sempre soubera que a relação de ambos teria de evoluir, de qualquer modo possível.

Gilbert não costumava acreditar em destino. Mas o amor de Anne o fazia repensar o assunto.

Foi quando o rapaz viu de relance, um nome familiar. O primeiro pensamento que teve foi: "Agora comecei a ver coisas?".

Ele pegou o jornal ao seu lado, que provavelmente havia sido esquecido, e arregalou os olhos. Começou a ler:

"A cultura indígena
Por Anne Shirley-Cuthbert

A aceitação da cultura indígena não é um assunto de conhecimento popular, pouco se fala, pouco se discute e pouco é divulgado. Porque desde que éramos crianças, ouvíamos: “Selvagens imundos. Fique longe deles, criança”. Quem nunca? E quem nos diz isso, são pessoas que confiamos, e até mesmo amamos: pais, amigos, familiares. Eles repetem o que foi dito à eles na infância.

Mas temos que compreender, que podemos contradizê-los. Que não devemos trocar nossas ideias próprias por aceitação. Pois caso o contrário, tomaremos como certo o comportamento de manada. Não pensamos, apenas repetimos.

Mas os aspectos culturais dos diferentes povos, devem ser analisados pelo olhar do sujeito inserido naquele contexto, de forma a desconstituir do observador qualquer bagagem preconceituosa ou carregada de valores que não fazem parte, não são aplicáveis ou são desconhecidos por aqueles a quem se observa. Então por um instante, se desfaça disso.

Como eu disse, somos acostumados com essas ideias. “A pele dele é escura. Mantenha distância”. A tendência do ser humano nas sociedades é de repudiar ou negar tudo que lhe é diferente ou não está de acordo com suas tendências, costumes e hábitos. Então por que deveríamos mudar agora? Não pare de ler, eu sei onde estou me metendo. Eu te digo o porquê.

Porque embora a questão pareça louca, de fato não é, visto que apresenta uma profundidade em razão dos princípios envolvidos no assunto. Porque a mudança, embora muitas vezes nos assuste, se faz necessária para a evolução. Porque o assunto atinge toda uma cultura. Os indígenas constituem uma parte da pluralidade étnica que compõe o nosso país e, assim como nós, são dotados de tradições que representam seus valores e visões de mundo que merecem respeito.

Ah, a cultura... O conceito de cultura tem uma longa história. Só não entendo uma coisa: por que temos mais facilidade em aceitar os estado unidenses, os alemães e os ingleses que os índios? Todos tem sua própria cultura. Mas se eu sei que esse simples artigo será atacado com todas as forças, como posso esperar que os índios sejam assim, de repente, aceitos?

Bom, eu tenho fé. Eu sei que, mentalidade por mentalidade, o mundo é transformado. Saber que ainda existe esperança me dá certo alívio. Saber divulguei alguma, me deixa de bem com o mundo.

Há uma escola de índios próximo ao condado de Avonlea. Ou melhor: uma cadeia. Crianças – imagine, por favor, apenas imagine – tem os nomes trocados e ideias induzidas. São espancadas em nome de Deus, que deveria simbolizar o amor, e obrigadas a deixar para trás suas crenças, hábitos, sua língua.

Clamo pelo apoio de vocês. Por seu senso do que é certo. Independente de seus preconceitos, parece certo uma criança levar uma surra simplesmente por ser quem ela é?! Parece certo toda uma cultura sendo tratada como animais quando eles não fizeram absolutamente nada de errado?! Céus, eu só estou pedindo paz!!!

Cada grupo indígena possui sua própria organização e tem autonomia para viver conforme sua política, religião e aspectos culturais, de forma livre. Ou ao menos, deveria.

***

Eles não são selvagens ou bárbaros, são pessoas, como você e eu.

Todo indivíduo necessita ser reconhecido e respeitado, e não viver constantemente na busca pela igualdade e proteção de seus direitos perante a sociedade que nunca terá fim. Certamente há espaço para a coabitação de raças e culturas distintas aqui.

***

Para retomar a pergunta formulada no começo desse artigo, parece que resta apenas a saída de deixá-los em paz para seguirem seu próprio caminho, ou seja, assumi-los como sujeitos de sua própria história, capazes de conduzir e negociar suas mudanças. Não somos nós que deveríamos negociar a vida deles.

O PONTO ALTO DA QUESTÃO NÃO ESTÁ APENAS EM CONSTATAR AS DIFERENÇAS, MAS SIM EM APRENDER A LIDAR COM ELAS."


Gilbert estava abismado. Na verdade, admirado. Aquela garota estava mesmo à frente de seu tempo! Senhorita Stacey ficaria orgulhosa.

- Senhor? - o homem que trabalhava na estação o chamou, despertando-o para a realidade. - Acho que aquele é o seu trem.

Continuação de Anne com EOnde histórias criam vida. Descubra agora