Ka'kwet

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No fim daquela tarde, os índios desceram o riacho com semblantes perturbados. E continuaram assim, durante dias, em um atordoado e silencioso transe. Nenhuma palavra havia sido proferida desde que deixaram aquela terrível escola. E todos choravam, com uma única exceção: Ka'kwet.

Tudo o que ela pensava era: "sim, eu queria sair daquele lugar ruim. Mas a que preço?! Todas aquelas vidas pagaram a minha liberdade?".

O grupo havia chegado em tão grande quantidade que o chão tremia com seus passos firmes e decididos. Seus melhores caçadores, estavam todos ali. Mas agora, era composto apenas por Ka'kwet, seus pais, e mais meia dúzia de índios fracos, alguns até feridos. Isso havia destroçado ainda mais o que restara do coração de Ka'kwet. Ainda por cima, eles sabiam que não estavam à salvo. Que nunca mais estariam. Que passariam por muitas dificuldades. E que assim que chegassem ao vilarejo Miq'mak, lugar que costumava esbanjar tanta paz, teriam que sair de lá o mais rápido o possível se não quisessem mais mortos na tribo. Ka'kwet se responsabilizava por isso.

Os pais de dela, estavam gratos. Aqueles sacrifícios haviam trazido sua filha outra vez. Uma filha que não se parecia nada com a indiazinha feliz que outrora havia sido, mas ainda assim, uma filha. O que não apagava a tristeza e o remorso de deixarem pessoas para trás. A dor era aguda e latente, e os acompanhou durante todos os dias de caminhada, quando a sobrevivência era a única coisa que importava.

A volta fora mais rápida que a ida. Eles passaram por bosques de abetos vermelhos, recantos jamais vistos e pomares salpicados de flores primaveris. Caminharam por trilhas sinuosas contornadas de jovens bétulas e faias, túneis de cerejeiras brancas em flor, florestas densas e escuras, clareiras hialinas, pastos verdes e lindos pomares. Viram fileiras de roseiras exuberantes, um tapete de violetas desabroxadas, um jardim de narcisos pálidos e charcos cobertos de musgo.

Uma parte escondida de Ka'kwet ousou reparar na beleza destas coisas por um mísero instante. Mas no segundo seguinte, ela se repreendeu com tanta raiva, que durante o resto do caminho essa partezinha não se manifestou mais uma única vez sequer.

Bom, quase. Pois quando estavam quase chegando na tribo, Ka'kwet saiu correndo em um impulso de luz. E enquanto corria o mais rápido que podia, finalmente chorou. Lágrimas escorriam por seu pequeno rosto moreno e o vento as varria dali com rapidez. Seus pais eram os únicos que tinham forças para ir atrás dela, e a seguiram até... Green Gables!

Naquele momento, Marilla falava com Jerry na varanda da casa. Ele lhe contava que as aulas da Senhorita Stacey estavam cada vez mais produtivas, e que ele estava aprendendo a escrever uma redação. Matthew, como de costume, estava no celeiro, pensando em Anne, na primeira vez que a vira na estação de Bright River.

- Anne!!! Anne!!! Melkita'ulamun!!! - gritou Ka'kwet com lágrimas nos olhos e um angustiante tom de desespero na voz quando chegou ao pasto da humilde residência dos irmãos Cuthberts. Quando seus pais finalmente a alcançaram, ofegantes, Marilla e Matthew já estavam indo ver que gritaria era aquela!

- Ka'kwet? - indagou Matthew quando chegou, lembrando-se da garota. - O que fazem aqui?

- Por que está chorando, menina? - perguntou Marilla com o olhar inquieto.

- Anne. Anne. - a indiazinha pediu com um sussurro, limpando o gosto molhado.

- Anne está na faculdade! - rebateu a irmã Cuthbert.

Como se não tivesse mais forças, Ka'kwet agachou no chão com um gemido de dor ao saber da notícia, exatamente como Anne havia feito há 4 anos atrás quando soubera que não a queriam em Green Gables. Os pais dela agacharam-se ao seu lado, com evidente preocupação, e tiveram uma longa conversa na língua deles, enquanto Marilla e Matthew apenas se entreolhavam com apreensão.

Minutos depois, quando Ka'kwet levantou-se com o rosto virado para baixo, ela traduziu uma conversa entre seus pais e os pais de Melkita'ulamun, que ficaram simplesmente horrorizados com a história que lhes foi contada. No fim, eles disseram apenas:

- Tomaremos uma providência.

Continuação de Anne com EOnde histórias criam vida. Descubra agora