Após o vagaroso cair da noite, Gilbert ainda observou as estrelas do trem por um longo tempo antes de precisar pegar suas malas e desembarcar em Avonlea. Toronto era uma cidade distante, e aquela viagem de um dia havia eliminado todas as energias do rapaz, até as que ele supostamente deveria usar para se animar ao chegar em casa.
Mas na verdade, o sempre amistoso sr. Blithe estava intocado em um terrível mal-humor. Viajar com seu pai era uma coisa. Viajar no navio com Bash era outra. Mas viajar completamente sozinho por 12 horas perto do vagão dos fumantes era algo completamente diferente, que o havia aborrecido mais do que Avonela poderia compensar.
Por isso Bash, que havia ido buscá-lo na Estação Bright River com suas melhores roupas e seu melhor sorriso, tentou segurar um pouco a língua na hora de voltar para casa de charrete. Eles haviam se abraçado, brincado e trocado algumas ideias, por educação e carinho, mas Sebastian logo percebeu que, ao menos naquele momento, o que Gilbert mais queria era uma cama macia e o doce silêncio noturno.
Bom, a verdade foi que o homem não pôde ficar em silêncio por tanto tempo assim. Bash precisava falar com Gilbert (que já sabia disso, afinal almas irmãs não precisam de tantas palavras). Ele estava esperando por aquele momento desde que desencobrira para si mesmo o assunto em questão.
- Tem uma mulher... - começou ele, hesitante, e Gil imediatamente pulou fora de seus devaneios com a menção de uma figura feminina que poderia estar tomando conta dos pensamentos de seu amigo.
- Uma mulher. - Gilbert tentou compreender, em vão, aonde aquele assunto iria dar. O mal-humor começara a se dissipar pela curiosidade.
- Sim Blithe, uma mulher... - Bash tossiu, respirou fundo, pigarreou, conduziu a égua da charrete e passou a mão no cabelo antes de completar: - Quero me casar novamente.
O silêncio se estendeu mais do seria considerado cômodo, mas ninguém fez nada para interrompê-lo.
Bash estava tenso, aguardando. Ele ainda não havia conseguido ir a casa da Senhorita Stacey como pretendia naquela tarde quando encontrou Marilla na estrada, e tudo o que sentia ser necessário era uma conversa com seu melhor amigo. Com alguém que já havia amado Mary e que poderia entendê-lo.
E o rapaz, sejamos sinceros, estava simplesmente chocado. Mary fora o amor da vida de Bash e nunca sequer ocorreu a Gilbert a ideia de um possível novo casamento!
- Quem é? - ele perguntou. Bash fez novamente todo aquele ritual desconfortável de tossir, pigarrear, respirar fundo e etc. antes de enfim admitir:
- A senhorita Murial Stacey... - um novo silêncio. - Ah Blithe, pelo amor de Deus, diga algo, homem!
Nisso, Gilbert apenas riu e perguntou, consciente de que seu choque incomodava:
- A senhorita Stacey? Uau Bash, eu não poderia estar mais surpreso! Você a ama?
- Temos sido amigos. Pescamos juntos, e... - um suspiro irrompeu a noite - Sim. Sim, eu a amo.
- Então, fico feliz por você, amigo! - disse Gilbert. - E por ela! E pela Delphi! Nossa, como senti falta de Delphi... Nossa, Sebastian! Teremos um casamento logo então! Sua mãe ficará extasiada! E a senhora Lynde, meu Deus! Eu serei seu padrinho, é claro.
Bash ria descontroladamente da reação do outro, e também ria de alívio, como se um peso fosse tirado de seus ombros. Gilbert sabia que Mary nunca seria esquecida. Mas ele também estava feliz por seu novo amor! Sim, se dependesse apenas dele, haveria um casamento logo. Agora só seria preciso um pedido e uma resposta positiva.
- Espera, aonde estamos indo? - perguntou Gilbert de supetão quando se deu conta de que aquele não era o caminho de casa.
- Você só percebeu agora? - o bem humorado Bash riu ainda mais. - Espere e verá, garoto!
- Sebastian... - murmurou Gilbert em tom de ameaça.
- O que? Oh, que medo! Sr. Blithe voltou da faculdade com sangue nos olhos! Já conseguiu levantar sua mochila então?
Gilbert empurrou o homem como se quisesse derrubá-lo da charrete, mas sorria. Como havia sentido falta destas provocações!
Porém, seu sorriso desapareceu quando se viu... diante de Green Gables. A sua frente, o pasto de Matthew se estendia até a casa dos Cuthberts, e logo ali na porta, uma linda garota ruiva o esperava com uma lamparina na mão e um sorriso enorme no rosto sardento.
- Você a ama? - perguntou Bash. Gilbert quase não ouviu, surdo pelas batidas de seu coração.
- Sim. - respondeu ele, afoito, sem desviar os olhos de Anne. - Sim, eu a amo.
Então o rapaz desceu da carroça e, literalmente, correu.
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Continuação de Anne com E
Roman d'amour"Me lembrei que o mundo real era amplo; um campo vasto de esperanças e medos, de sensações e excitação, aguardando aqueles que tivessem a coragem de ir adiante em seus campos para buscar o conhecimento real da vida, em meio aos seus perigos." - Jane...