Capítulo 1

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Agora era oficial! Eu estava em êxtase olhando o comprovante de matrícula
do curso de Inglês na escola ELS, English Language School em Grand Forks,
Estados Unidos. A cidade localiza-se na divisa de Dakota do Norte e Minnesota.
Apesar de nunca ter sido uma pessoa aventureira, chegar perto dos trinta podia
virar a cabeça de qualquer pessoa. O fato de ser uma pessoa sozinha ajudava.
Meu pai morrera uns oito anos atrás em um terrível acidente de carro. Dizer que
ele teve azar era atenuar os fatos. Em uma cidade como São Paulo com mais de
11 milhões de habitantes, ele viu minha mãe entrando em um motel com um
homem no mínimo quinze anos mais jovem que ela, O choque foi tamanho que ele
entrou em alta velocidade na Marginal Tietê e quando por algum motivo o
caminhão a sua frente diminuiu a velocidade, meu pai não conseguiu frear a
tempo, entrando em baixo do veículo. Eu amava meu pai, ele sempre tinha tempo
para mim. Um ombro, um colo, um conselho. Minha mãe sempre amou a si
mesma e eu nunca a perdoei. No dia da missa de sétimo dia mudei para casa da
minha melhor amiga e depois do inventário pude comprar meu próprio
apartamento.
Eu cresci e amadureci na marra. Consegui um estágio no Arquivo Público de
São Paulo e depois de formada fui contratada para trabalhar na parte de
recuperação e conservação de documentos antigos, eu era também uma das
especialistas em Paleografia. Minha mãe casara novamente e mudara-se para
outro estado, desde então nunca mais nos falamos. A idéia de ir para os Estados
Unidos surgiu depois de tirar um extrato no banco e ver o quanto rendera em
todos aqueles anos o dinheiro da venda de um pequeno terreno na praia que meu
pai deixara e que eu havia aplicado e esquecido.
Eu vivia um momento de crise existencial. O que eu estava fazendo da minha
vida? Isso é tudo o que eu poderia almejar? Estava satisfeita vivendo assim? Eram
as perguntas que passavam pela minha cabeça todos os dias. Eu sempre fora
muito travada, muito reclusa e depois de um relacionamento conturbado eu havia
ficado mais fechada e desconfiada.
Eu conheci Rodrigo no segundo ano da faculdade, ele era do grupo popular
cursando Direito. Bonito, alto e musculoso, fiquei encantada pelo seu jeito
educado, bem humorado e brincalhão. Encontrávamo-nos no bar da faculdade na
hora do intervalo, os olhares foram evoluindo para os cumprimentos educados de
bom dia, até que depois de uns dois meses ele me convidou para sair.
Começamos a namorar e éramos inseparáveis, saíamos todos os finais de
semana para dançar, ir ao cinema ou passar os finais de semana na casa de seus
avós no Guarujá. Rodrigo era romântico e atencioso, mas depois de três meses de
namoro, sua verdadeira personalidade começou a aflorar. Ele passou a se mostrar
mimado, egoísta e egocêntrico. Tudo tinha que ser do seu jeito, ele era mal
educado com garçons, guardadores de carro e porteiros e com quem cruzasse
seu caminho sem ter algum benefício a lhe oferecer e o pior, ele nunca aceitava
um não.
Logo que resolvi terminar o namoro eu comecei a arrumar desculpas para não
vê-lo, não atendia ao telefone e fingia não estar em casa, mas ele ficou
extremamente ciumento, fazendo marcação cerrada, chegando a me esperar na
porta da faculdade e me seguir depois da academia. Quando finalmente quis
colocar um ponto final no relacionamento, ele ficou agressivo, chegando até a me
agredir fisicamente. Finalmente procurei ajuda na delegacia da mulher, entrei com
uma liminar e passei uns dias escondida na casa de uma amiga, depois disso
nunca mais fui a mesma. Confiança era algo em que eu acreditava somente até a
página dois.
Apesar de sair de minha zona de conforto, eu estava pronta para o que viesse.
Eu queria mais da vida, queria me arriscar, viver outras experiências. Sabia que os
próximos dias seriam uma loucura. Pedir demissão do emprego no Arquivo
Público, comprar as passagens, fazer compras, desligar a água e luz do
apartamento, vender o carro. Mas primeiramente... as compras!
Peguei meu Ford Explorer e fui direto ao shopping. A primeira coisa da minha
lista eram as malas. Havia apenas um estabelecimento especializado e quase fui
atacada pela única vendedora na loja jogada às moscas.
- Posso ajudar?- Perguntou cheia de dentes.
- Preciso de uma mala bem grande, uma pequena e uma valise de mão.
A vendedora mostrou os tamanhos e as opções de cor. Escolhi uma mala
gigante, uma pequena para sapatos e uma valise de um lindo tom de roxo.
Próxima parada, roupa íntima!
Três horas depois, eu já havia comprado cinco lindos conjuntos de lingerie, duas
camisolas, um delicioso pijama de flanela, além das malas. Deixei tudo no carro e
voltei para comprar um livro sobre Dakota do Norte e comer alguma coisa. Depois
de duas viagens do estacionamento até o apartamento, carregada de sacolas,
finalmente me despi, tomei um banho e me joguei na cama de roupão e toalha nos
cabelos com o livro nas mãos.
Dakota do Norte fica na região Centro-Oeste dos Estados Unidos, no inverno as
temperaturas podem chegar a menos dezoito graus. Continuei a ler e comecei a
enrolar uma mecha de cabelo no dedo indicador, sinal claro de minha ansiedade.
O capítulo seguinte falava em tempestades de granizo e tornados e como grandes
tempestades de neve são relativamente comuns no Estado.
- Bem, covarde nunca fui, se está bom para os americanos, está bom para mim!
Levantei da cama e fui pegar o bloco de notas ao lado do computador, onde
metodicamente anotara todas as providências a serem tomadas. Riscando tudo o
que já fizera, e com o formulário de aceitação da escola em mãos, faltava pedir o
visto e comprar as passagens. Os formulários já estavam preenchidos, a
entrevista já estava marcada, era só aguardar. De qualquer maneira as aulas só
começariam dentro de três meses. Peguei mais uma vez o folder da escola, que
ficava no campus da Universidade de Dakota do Norte, numa linda área florestal
de 220 hectares a apenas dez minutos de ônibus do centro de Grand Forks, o que
foi decisivo na escolha. Como não era mais uma adolescente, sabia que não me
sentiria bem morando no campus. Resolvi que iria alugar alguma coisa próxima à
escola e arrumaria um emprego para ajudar nas despesas. O fato de a escola ser
tão perto do centro era perfeito e Grand Forks ser uma típica cidade universitária
com cerca de apenas cinqüenta mil habitantes era a cereja do bolo.
Era isso o que eu queria, eu estava cansada da loucura de São Paulo, a
violência e o trânsito estavam limitando e muito minha vida. Literalmente eu era
uma refém do medo. Minha vida se resumia ao trajeto casa – trabalho e vice
versa. Sábado era dia de ir ao supermercado, então eu sempre ia a um shopping
perto da minha casa e esse era meu único momento de lazer, já que os shoppings
eram os únicos locais que ainda ofereciam um pouco de segurança. Lá eu fazia
minhas compras da semana, ia ao cinema, visitava minha livraria favorita e comia
alguma coisa. Graças a esses e outros cuidados, eu nunca havia sido assaltada,
mas isso não me bastava mais, eu sentia falta da vida ao ar livre, ar puro e
principalmente o sossego de uma pequena cidade.
Faltando dois dias para a viagem, eu estava uma pilha de nervos. Tudo estava
pronto, e como a luz e a água do apartamento já haviam sido desligadas, seria
mais cômodo ficar em um hotel próximo ao aeroporto antes de embarcar.
Os
últimos dias foram deixados para relaxar e fazer coisas de garotas como
manicure, cabelo e depilação. Depois de passar o dia no salão, dei a última
passada no shopping para jantar e comprar alguns livros para me distrair nos 9080
quilômetros de distância entre São Paulo e Grand Forks.
A noite anterior à viagem foi extremamente agoniante, comecei a sentir todo o
peso da minha decisão. Para começar, o modo como escolhi o lugar em que iria
estudar. Eu simplesmente havia comprado um mapa dos Estados Unidos,
estendendo-o no chão da sala, fechei os olhos e joguei uma moeda, que na
verdade caiu entre Minnesota e Dakota do Norte e para desempatar fiz um cara ou
coroa. Mas agora era tarde para medos ou arrependimentos. Passei os olhos pelo
apartamento, meu cantinho todo decorado por mim. Entrei no quarto para ver se
não estava esquecendo nada, pela janela vi a velha névoa de poluição e a
paisagem metropolitana do décimo terceiro andar. O estranho é que a partir do
momento que decidi ir embora, passei a me sentir uma estranha ali. Fechei a porta
suavemente atrás de mim e desci. Na rua, me senti engolida pelo anonimato da
multidão enquanto buscava freneticamente um táxi vazio.
O vôo saiu de São Paulo às nove e quarenta da noite e o simples fato de estar
naquele avião era surreal. Ás cinco e trinta e sete da manhã chegaria a Harts
Jackson, Atlanta e teria uma espera de aproximadamente cinco horas para fazer a
conexão até Minneapolis. A sorte é que a falta de sono causada pela ansiedade
dos últimos dias fez com que o sono falasse mais alto que o medo de voar, e que
a viagem passasse em um piscar de olhos. Sem atrasos o avião pousou as seis e
quarenta da manhã no solo da Geórgia. Esfregando os olhos pesados de sono
desci, peguei minhas malas e me dirigi à primeira cafeteria que avistei, pronta para
tomar meu primeiro café da manhã tipicamente americano, com direito a
panquecas, ovos com bacon e principalmente muitas canecas de café.
Finalmente, as duas e quarenta e cinco da tarde cheguei ao aeroporto de Grand
Forks. Peguei minhas malas e me encaminhei ao ponto de táxi. Depois de dar as
coordenadas ao motorista, relaxei observando a paisagem. A cidade de ruas
impecáveis e grandes prédios de tijolos vermelhos, cercada de verde por todos os
lados logo cativou meu coração. Em pouco tempo o carro parou na frente do hotel
Red Roof In, um prédio térreo, comprido e de tijolos em vários tons de bege.
Depois de me registrar e esperar o funcionário deixar minha bagagem no chão,
me joguei na cama ampla e macia, suspirando relaxada pela primeira vez em
semanas. Tinha três dias de reserva, tempo mais que suficiente para encontrar um
imóvel antes do início das aulas, que começariam depois do Labor Day, feriado do
dia do trabalho, que cai sempre na primeira segunda-feira de Setembro.
Eu estava extasiada, estava mesmo nos Estados Unidos! Liguei a televisão para
ver a programação, olhei pela janela e até o cardápio do hotel, depois de explorar
todo o quarto, fui arrasada pelo jet leg e deitei um pouco na enorme cama para
descansar um pouco. Acordei assustada e desorientada, por um instante não
lembrava onde estava e se era dia ou noite. Olhei a volta e a escuridão dominava
o quarto, tateei a mesinha de cabeceira e encontrei o celular e com um toque na
tela descobri que eram quase oito horas da noite, havia desmaiado por umas três
horas. Com o estômago pedindo comida, me arrastei até o banheiro para uma
ducha rápida. Estava louca para sair do quarto, dar uma volta e ver gente. Em
pleno outono a temperatura estava em torno de dez graus, escolhi uma blusa de
cashmere creme e um casaquinho de nylon branco forrado de pele, nos pés botas
marrons sem salto, forradas de lã. Peguei a bolsa e saí.
O vento frio era revigorante, seguindo as orientações do recepcionista dobrando
a direita e andando aproximadamente umas duas quadras, já estaria no pequeno
centro da cidade, em seguida avistei o Darcy's Café na Whashington Street. O
lugar imenso com uma grande lareira de pedra cinza bem no centro estava
praticamente vazio. Nem precisei pegar o cardápio para fazer meu pedido, pedi
hambúrguer com batata frita, um copo grande de coca com gelo e torta de maça
de sobremesa.
No dia seguinte levantei cedo disposta a sair e só voltar para o hotel depois de
encontrar um imóvel para alugar. Após o café parei na recepção.
- Oi, qual a melhor maneira de encontrar imóveis para alugar na cidade? -
perguntei.
- Como essa é uma cidade universitária, existem muitos anúncios no jornal. -
respondeu o recepcionista sorrindo. Agradeci e tomei o mesmo caminho da noite
anterior. Passando por uma máquina de jornais, coloquei algumas moedas, abri a
tampa de vidro e retirei um exemplar, sentando no mesmo lugar no Darcy’s. Pedi
uma xícara de café, tomando em pequenos goles enquanto folheava o periódico.
Era impressionante como eram caros os imóveis, principalmente na área central
da cidade. Quando já estava quase desistindo, encontrei um anúncio que chamou
minha atenção. O texto descrevia uma pequena cabana com um dormitório, perto
do lago, por $200 dólares por semana. Era menos da metade do valor dos
apartamentos que estavam anunciando perto da escola e da Universidade de
Dakota do Norte, e com o emprego para ajudar nas despesas, daria até para
comprar um carro usado para facilitar o deslocamento.
Voltando ao hotel a fim de ligar para o telefone do anúncio, um cartaz de
contrata-se chamou minha atenção na fachada de um restaurante chamado The
Toasted Frog. Entrei e depois de rápida conversa com o proprietário, estava
contratada para o turno da noite com um salário de $7,25 dólares à hora.
Começaria no dia seguinte das cinco da tarde à meia noite.

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