Adorable

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(Gerard)

Despertei mais cedo que desejei. Meu relógio biológico tratou logo de me acordar no mesmo horário de sempre, informando-me que mais uma manhã havia chegado. Hoje seria um daqueles dias aporrinhantes, onde meus pais estariam em casa, certamente de folga após o plantão no hospital. Consequentemente, significa que Frank precisaria atuar, fingindo me tratar com cuidados excessivos para que minha mãe continue acreditando no quão rigoroso ele supostamente é.

Por falar em Frank, eu ainda podia ouvir a sua respiração pesada ao meu lado, e além disso, sentia também um dos seus pés confortavelmente entrelaçado no meu. Sua pele quente unida à minha criava um calor agradável, e eu desejei não quebrar o contato durante um bom tempo, entretanto, minhas necessidades fisiológicas infelizmente iam contra o meu desejo.

Desvencilhei lentamente nossos pés e logo removi o edredom quente que cobria o meu corpo, sentindo um sopro gélido matinal contra meus braços descobertos. Levantei-me com cautela, seguindo até o banheiro, arrastando o pé por todo o caminho na tática que desenvolvi para andar com segurança na ausência da bengala.

Após empurrar a porta e fecha-la em seguida, balancei as mãos em frente ao corpo até encontrar a tampa fria do sanitário, a qual ergui, finalmente me sentando para urinar.

Após, lavei as mãos e realizei o restante da higiene matinal, atentando-me em escovar os dentes mais de uma vez, por motivo nenhum em especial.

Deixei o banheiro, rumando novamente até a cama, onde acomodei-me de novo por entre os lençóis aquecidos pelo corpo de Frank, o qual julguei estar deitado em uma nova posição, considerando a forma como o colchão estava diferentemente afundado. Tateei a mesa de cabeceira, buscando o meu livro em braille, o qual apanhei logo que senti a capa dura em minha digital, abrindo diretamente na página marcada onde parei. Passeei os dedos diligentemente por cada relevo, sentindo literalmente na pele cada palavra.

"Beije-me uma vez mais, e não me deixe ver os seus olhos! Perdoo-lhe o que você me fez. Amo a minha assassina... mas não a sua! Como eu poderia viver sem minha vida? Como eu poderia viver sem minha alma?"

Lembro-me quando Elena me presenteou com o morro dos ventos uivantes. Eu ainda era muito novo, mal pude compreender o enredo e as palavras difíceis. Minha avó insistiu para que eu o lesse anos mais tarde, e assim o fiz. Certamente foi meu maior acerto. Mikey não poderia ter feito melhor quando decidiu me presentear com a versão em braille para que eu o pudesse reler pela milionésima vez aquela obra que tanto me agradava.

"Beije-me uma vez mais, e não me deixe ver os seus olhos!"

Por algum motivo, aquela frase em específico me levou automaticamente ao beijo roubado de ontem. Parcialmente roubado, eu diria. Talvez eu não possa dizer que Frank de fato me roubou um beijo, uma vez que eu mesmo lhe entreguei de bom grado após entender o motivo pelo qual fui beijado.
Ele me acha atraente. Frank me beijou porque me acha atraente, mesmo sendo cego e limitado, mesmo dependente e desajeitado. Ele me beijou, exatamente como se eu fosse normal. Frank me vê como uma pessoa normal, eu mal consigo pensar em palavras para descrever como me sinto grato por isso.

Salvo Mikey, Frank até o momento foi o único que aceitou me tratar como se eu não portasse uma deficiência. Claro, é o mínimo me respeitar como se respeita qualquer outra pessoa, porque a minha condição não faz de mim menos merecedor, e eu estou absolutamente consciente disso; contudo, vivendo em um mundo repleto de privatizações e limitações, é novidade ser tratado finalmente como desejo e respeitado como mereço.

Refletir sobre isso me deixou tão absorto em meus próprios pensamentos, que sequer pude ouvir o momento em que aquele que há pouco jazia ao meu lado, se despertou. Frank havia acordado e eu só soube quando sua voz se fez presente em um bocejo preguiçoso e prolongado.

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