Marsala
Na visão de Cândido, a propriedade dos pais de sua amada era o tipo de lugar que ele nunca imaginaria pôr os pés.
Um branco frio apossava-se de todo o interior da casa, sendo presente no sofá largo que devia acomodar todo o bairro, na luminária de coluna tripé que poderia gerar luz para todo o estado, no piso puro de porcelanato, e finalmente nas paredes, que reprimiam qualquer conspurcação que não fosse daquela cor. Um piano, apesar de seguir a cor predileta da família, conseguia se destacar no canto devido às suas proporções. A alguma distância, uma lareira, graças à sua timidez, conseguia se esconder em uma parede.
— Mãe! Pai! — gritou Clara. — Eles devem estar na sala de jantar! Vem! Por aqui!
Cândido a seguia ao mesmo tempo em que mexia no celular, fingindo não estar surpreso pelo fato da casa de sua amada possuir uma sala de jantar estruturada unicamente para jantar.
Ao chegar ao cômodo, Cândido descobriu não ser o único a usar o aparelho tecnológico. Seu sogro utilizava o celular na mesa, quando levantou a cabeça e uma de suas sobrancelhas para o pernambucano. O pai de Clara parecia ter visto um espectro no lugar de Cândido. Mas em vez de assombrado, o olhar opressor do homem era de análise. Porém, rapidamente voltou a checar o celular, como se a presença de Cândido não fizesse qualquer diferença por ali.
Ou esse cabra tá louco ou eu tô cheirando a merda que só a gota... Pensou Cândido.
— Mãe, pai, esse é o Cândido! — anunciou Clara.
— Oi, Cândido! Tudo bem? — disse a sogra sorridente enquanto se levantava para cumprimentar o rapaz.
— Tudo certo! Não precisa se preocupar comigo! — avisou Cândido, que não pôde sentir um sinal de conterraneidade regional no sotaque da sogra.
— Tche! Eu faço questão! Clara falou muito bem de ti! — replicou a sogra enquanto abraçava o rapaz, que nessa hora já tinha confirmado sua hipótese: A mulher morava há tanto tempo naquele lugar, que já tinha pegado o máximo possível de características do povo que ali residia.
A estatura baixa da sogra fez Cândido se abaixar para abraçá-la. Sua roupa branca fantasmagórica combinava com as vestimentas da filha e do marido; mas as pulseiras coloridas, além do lenço azul marinho que tampava grande parte da cabeleira, traziam uma explosão de barulho que Cândido logo reconheceu como artefatos nordestinos.
Enquanto isso, a presença do visitante permanecia invisível à vista do pai de Clara.
— Pai?! Não vai cumprimentar o Dido, tche!? — indagou Clara.
Eu não acredito que ela tornou público o apelido que ela usa quando estamos sozinhos, pensou ligeiramente Cândido.
Era a vez de Clara se sentir ignorada pelo pai.
— Clara, preciso que me acompanhe! — disse finalmente o sogro.
— E eu preciso que tu cumprimente o Cândido antes, tche! — respondeu Clara com serenidade.
— Não temos tempo pra isso! — O pai disse acidamente.
— Bah... Qual o problema dele? — Clara dirigiu a pergunta à mãe.
— Venha, guria! — ordenou o pai, abrindo a porta mais próxima e logo sendo seguido pela filha, que fechou a porta com raiva.
O ruído de porta sendo fechada agressivamente foi tudo o que restou para Cândido e sua sogra. Ela, notoriamente desconsertada, foi falar com ele.
— Perdão pela inconveniência do meu marido... Ele não tem andado muito bem nos últimos dias... Tu sabe... A crise tem nos afetado demais!
— Não, não... Claro! Entendo perfeitamente! — mentiu Cândido que, por mais que se esforçasse, não tinha ideia do motivo pelo qual seu sogro agiu de forma tão esquisita.
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Espectro
RomantizmCândido é pernambucano, mas sua faculdade de Artes o leva a morar no Rio de Grande do Sul. Lá, ele conhece Clara, que, posteriormente, forma um casal interracial junto a Cândido. Numa estória de amor que conta muito mais que apenas romance, os dois...