Meus olhos doíam muito. Acordei assustada com a luz que batia contra meu rosto. Estava deitada em uma superfície muito desconfortável. Como sempre acontecia, minha mente demorou a se acostumar com o novo corpo. Eu tentei entender melhor o meu redor. Ainda meio fraca, olhei a área, parecia uma estrada abandonada. Eu estava deitada no chão de terra e não parecia ter nenhuma alma viva por perto.
Senti uma dor pulsante em minha cabeça, que me obrigou a fechar os olhos. Esse era o sinal que minha mente estava chegando no lugar. As informações voltavam muito rápido, meus neurônios não suportavam e tudo doía. Depois de um tempo, consegui abrir novamente os olhos. Agora que minha coordenação motora estava no lugar, eu tentei me mover. Me apoiando com o braço direito, eu consegui me sentar. Olhei meu corpo. Era um corpo magro e fiquei aliviada ao perceber que era uma mulher dessa vez.
Como sempre fazia, eu tentei lembrar de como aquela pessoa morreu. Fechei meus olhos e vi dois homens agarrando-a e a levando para um carro. Depois disso, era tudo muito confuso. Eram flashes de lembrança e quadros estáticos, mas deu a entender que essa mulher havia sido abusada antes de sua morte.
Eu não sei porque sempre queria ver como as pessoas morriam, talvez seja porque eu também quisesse uma morte. Eu queria uma morte de verdade, uma pra valer. Sem voltas. Sem novos corpos. Só queria descansar.
Ao tentar me levantar, percebi que esse corpo era de uma jovem. Devia ter, no máximo, vinte anos de idade. Ela tinha muita coisa pela frente, mas tudo foi tirado dela por aqueles dois monstros. Esse pensamento sempre passava pela minha mente ao acordar num corpo novo. Eu sentia pena das pessoas que morreram, mesmo não as conhecendo. Eu ainda me sinto estranha, às vezes, com os novos corpos. Acho que nunca vou me acostumar.
Me levantei e comecei a andar sem rumo por aquela estrada isolada. Não havia nada por perto. Nem árvores ou casas. Era um deserto. O sol queimava minha pele, enquanto eu procurava por um local para descansar.
Ao longe ouvi um ronco de motor. Um carro estava vindo ao meu encontro. Isso me deixou feliz. Eu iria pedir uma carona até o lugar mais próximo. Torci para que parasse. Fiz sinal com a mão e para minha sorte ele parou. As duas portas da frente se abriram ao mesmo tempo e dois homens saíram de dentro do veículo escuro. Esse veículo escuro era idêntico ao que eu vi nas minhas memórias. Eu me assustei ao olhar para aqueles homens e ver que eram os mesmos que haviam matado a antiga dona desse corpo. Eles vieram terminar o serviço. Não bastava matar, eles queriam se livrar do corpo também.
Os homens me olhavam, perplexos. Eles pareciam não acreditar no que viam. Claro, eles estavam vendo um cadáver em pé. Qualquer um ficaria assim.
– Como você ainda está viva? – indagou um dos homens. – Nós cortamos seu pescoço, sua desgraçada.
– Parece que você não fez isso direito. – Disse o outro homem.
Eu estava assustada, recuada e na defensiva.
– Não pode ser. Eu tenho certeza que degolei essa puta.
– Então degola de novo, porra.
O homem se virou e pegou uma bainha dentro do carro. Dentro dela, havia uma faca de cozinha. Ótimo, eu iria morrer outra vez com uma facada. Eu não queria morrer ali, de novo. Morrer é muito ruim. Todo o sangue, a dor, e depois voltar em outro corpo aleatório. Eu iria lutar.
O homem se aproximava de mim, enquanto o outro acendia um cigarro, apoiado no carro. Eu pensava no que poderia fazer, mas as possibilidades eram muito poucas. Eu não iria conseguir correr mais que eles com esse corpo pequeno.
– Vê se morre agora, sua vadia. – Ele desferiu um ataque, mirando meu peito. Eu me assustei e caí para trás. O golpe passou raspando e acertou a minha orelha. Senti o sangue escorrendo. A dor logo fez o lado direito do meu rosto arder.
O homem se recompôs e veio novamente para cima de mim. O golpe havia feito eu me despertar de vez. Recuperei meus sentidos e pude jogar o corpo para trás, desviando de outra facada. Me levantei rapidamente. Meu corpo pequeno tinha suas vantagens. Eu corri na direção oposta do carro. Não iria conseguir fugir por muito tempo. O homem estava vindo atrás de mim. Cada passo dele equivalia a dois meus. Sentia ele se aproximando a cada segundo, mas ainda assim eu corria o máximo que podia. Eu não queria morrer pela terceira vez seguida.
Ao longe eu vi uma descida pelas margens de um riacho seco. Se eu conseguisse chegar até lá, eu poderia me esquivar melhor. A essa altura, eu já ouvia passos pesados dele correndo atrás de mim. Estava a poucos metros de distância, em alguns segundos, ele iria me acompanhar. Eu precisava dar tudo de mim ali, precisava usar cada músculo do meu corpo. Me concentrei em correr o máximo que podia. Ele se aproximava mais rápido de mim do que eu me aproximava do riacho.
Eu estava a uns 5 metros de distância da encosta, quando senti os dedos dele no meu ombro. Eu me desequilibrei e quase caí. Aproveitei o movimento e pulei. Eu não me importava com alguns ossos quebrados, só queria ficar um tempo a mais viva dessa vez. Eu aterrissei na encosta do rio e fui descendo o mais rápido que pude. Eu ouvi o barulho dele pulando atrás de mim.
Agora eu estava mais distante dele e aqui eu tinha a vantagem do terreno acidentado. Pedras e buracos por todo lado obrigavam qualquer um a pular e desviar o tempo todo; e o meu tamanho facilitava a minha agilidade. Ele teria dificuldade de se locomover ali. Eu iria conseguir escapar.
Enquanto eu pensava em escapar, senti uma dor insuportável no meu ombro. Algo havia perfurado o local. Eu me desequilibrei na mesma hora, perdi os sentidos e caí de cara no chão. Fui descendo lentamente com o rosto pelo resto da encosta, até chegar lá embaixo. Eu não conseguia me mover, estava doendo muito. A dor tomou conta do meu corpo todo. Eu estava novamente encoberta de sangue, meu rosto estava todo vermelho. Ele havia jogado a faca em mim. Ele não precisava me alcançar para me matar, eu fui muito idiota. Agora ele poderia descer tranquilamente e terminar o serviço.
Aquela dor me sufocava e eu ansiava que ela parasse, mas não poderia fazer nada sobre isso. Eu já havia me acostumado a sentir dor, mas ainda não gostava nem um pouco da sensação. Tentei me levantar, mas foi inútil. Eu estava sem forças. Aquele homem estava se aproximando, descendo a encosta tranquilamente. Eu já estava rendida e ele não precisava se apressar.
Eu iria morrer outra vez. Não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso. Sinceramente, era o que mais me irritava. Não poder fazer nada sobre aquela situação, não poder decidir nada na minha vida, não poder nem morrer em paz. Tudo me irritava tanto. Eu não tinha controle sobre porra nenhuma. Porque a minha vida era assim? Eu era um fantoche nas mãos da morte, eu era um brinquedo para o seu divertimento. Eu morria, morria e morria. Era só o que eu fazia. Tudo que eu fazia era morrer. A morte está em mim e faz parte do meu ser, a minha alma é morta.
É isso. Eu morro, é isso o que eu faço, é isso o que sou. Morrer é meu objetivo. Estou aqui para morrer.
Senti a faca sendo retirada do meu ombro, numa latejante onda de dor. Logo em seguida, senti ela sendo enfiada em minhas costas, mirando meu coração. Ela acertou em cheio. Senti tudo queimando dentro de mim e a dor me congelou. A faca saiu de mim e entrou mais algumas vezes. Foi a minha pior morte. Foi a minha melhor morte. A morte da minha epifania. A morte que me fez descobrir quem sou.
Eu sou a morte.