Uma vida normal - 2

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Lá estava eu, morrendo outra vez. Meu peito doía, no local onde fui atingida. Eu sangrava e mal podia ouvir os gritos dela. Estava tudo embaçado e eu sentia meu corpo ficando mais e mais leve. Eu estava morrendo.

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Eu sempre estudei no orfanato. Aquela foi a primeira vez que eu entrei numa escola. O lugar era enorme e barulhento. Pra todo lado que eu olhasse, eu poderia ver dezenas de pessoas da minha idade. Talvez aceitar essa nova vida não tenha sido tão ruim, talvez agora eu pudesse experimentar, pela primeira vez, uma vida normal.

Desde que eu acordei nesse corpo as coisas têm sido mais fáceis para mim. A mãe de Cristine, que agora era minha mãe, é uma pessoa muito gentil. Ela cuida dos filhos sozinha, desde que o marido faleceu, há alguns anos. Meu irmão mais novo ainda tem 5 anos e é muito amável. Eu gostei de brincar com ele.

Eu não me sinto parte da família, mas me sinto bem com eles. Mas sempre me lembro de que esse corpo não é meu e que eles não sabem quem eu sou de verdade. Todos aqueles sorrisos não são para mim, são para Cristine. Todos os mimos e os carinhos são pra ela. Eu sou uma intrusa no corpo dela, eu sou uma completa estranha que eles acham ser Cristine. Eu não faço parte disso, eu tenho que ir embora.

- Cris!

Eu me assustei com o grito de uma pessoa atrás de mim. Me virei rapidamente.

- Você tá bem? Nossa eu fiquei tão preocupada.

Antes que eu tivesse tempo de ver o rosto daquela pessoa, ela me abraçou. Era um pouco mais alta que eu, seu abraço me fez sentir melhor sobre os pensamentos que estavam na minha mente.

- Me responde. - Ela disse se afastando.

- Eu... tô bem.

Eu não sabia quem era aquela garota, mas devia ser uma amiga de Cristine.

- Ainda bem, eu não sei o que faria sem você na minha vida.

Ela sorriu e me puxou pelo braço.

- Vem, quero te apresentar uma pessoa.

Eu só me deixei levar, como tinha feito desde que reencarnei neste corpo.

Nós atravessamos o pátio, ela estava tão empolgada que não se importava nem em desviar das pessoas à sua frente. Esbarramos em umas cinco pessoas até chegar numa escadaria.

- Espera, ele já vem.

- Quem?

Eu estava curiosa, mesmo sem saber de nada que acontecia.

- Eu te disse que tinha um novo crush, você não lembra?

Eu realmente não lembrava de nada.

- Eu não tive tempo de te dizer, mas...

- Espera, ele tá vindo.

Olhei na direção em que ela olhava. Muitas pessoas estavam vindo nessa direção. O crush dela poderia ser qualquer um daqueles.

- Cadê?

- Ele parou no bebedouro. É o de camisa azul.

Eu pude ver dessa vez. Era um cara normal, como todos os outros. Cabelo curto, altura normal, nada que chamasse a minha atenção. Na verdade, ninguém nunca chamou a minha atenção.

- Você não ia me apresentar a ele?

- É o que eu estou fazendo agora.

- Você pelo menos já conversou alguma vez com ele?

- É claro que não. Você sabe como eu sou tímida.

Eu não sei, eu literalmente não sei nada sobre ela.

- Eu preciso te dizer uma coisa. Eu perdi...

- Ai, meu Deus, ele olhou pra mim. Disfarça.

Ela me puxou de novo pelo braço e voltamos, pelo mesmo caminho através do pátio, só que, dessa vez, ainda mais rápido. Esbarramos em mais algumas pessoas que gritaram conosco, até chegarmos onde tudo começou.

O sinal tocou.

- Tenho que ir. - Ela disse. - Nossa, por pouco ele não percebeu que estávamos espiando.

- Eu não, você estava.

- Nós duas estávamos. Somos uma dupla, lembra?

Eu já estava me irritando com isso. Eu não lembro de nada, por favor pare.

- Eu perdi a memória.

- Como?

- Eu perdi a memória. – Repeti. - Não me lembro de absolutamente nada. Não me lembro da minha família, não me lembro da escola, não me lembro de você. Não lembro nem quantos anos eu tenho. - Finalmente consegui dizer.

- Ah, meu Deus. Por que não disse antes, Cris?

Eu estava a ponto de dar um soco na cara dela.

Ela me abraçou outra vez. Eu gostei disso.

- Eu vou te ajudar com tudo, eu prometo. Vamos pra minha casa depois da aula. Vou te contar tudinho.

- Obrigada.

Ela me soltou.

- Temos que ir agora. Você se lembra como ler e escrever?

Eu sorri.

- Provavelmente.

- Já é um começo. Vamos logo.

Eu a segui. Não sabia onde era minha classe.

- Pode me dizer seu nome?

- É Melissa, mas você me chama de Missa.

Eu sorri de novo, imaginando-a numa missa.

Aquele foi o melhor dia que eu tive em muito tempo.

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