Não consigo ver a minha infância em primeira pessoa. Eu sempre olho para meu passado como uma mera espectadora. Para mim, foi como se tivesse sido vívido por outra pessoa, tudo que eu tenho são as lembranças. E é realmente isso que aconteceu. Eu estou em um outro corpo agora e tudo que eu tenho são as lembranças daquela pequena garotinha.
Aquela garotinha correndo pelo jardim florido do orfanato Santa Olga mal sabia o que aconteceria a ela. Aquela garotinha cheia de sonhos e com um futuro desconhecido pela frente. Aquela garotinha sorridente. Ela era eu. Cássia Carvalho, esse é meu nome. Mas desisti de usá-lo, após a minha segunda morte. Não adianta muito ter um nome, se você muda de corpo toda hora. Então eu simplesmente não uso um.
Aquela garotinha não se cansava nunca de explorar aquele orfanato gigante. Ela gostava de andar com seu caderno de desenho na mão, desenhando e nomeando todos os insetos que encontrava. Seu caderno já estava com quase todas as folhas cheias de rabiscos coloridos, que ela jurava ser vários insetos diferentes. E ai de quem tentasse discordar dela.
Em um dia normal, como todos os outros, a garotinha tomou seu café da manhã às pressas e saiu para mais um dia de exploração. “Mas será que não tem mais nenhuma criança nesse orfanato?” você deve estar se perguntando. Sim, tinham muitas outras garotas no orfanato, e nenhuma delas gostava daquela pequena garotinha. “Ela é esquisita”, “no outro dia eu a vi comendo uma minhoca”, “eu ouvi dizer que ela conversa com os insetos” eram algumas das frases que elas diziam. Aquela pequena garotinha era muito solitária. As únicas pessoas que davam atenção a ela eram as freiras que cuidavam do orfanato. Mas aquela garotinha não ligava pra isso. Ela tinha seu caderno de desenho e seus lápis de cor. Enquanto ela tivesse isso, não precisava de amigo algum. Ela mesma pintava seus próprios amigos, e eles eram bem mais coloridos que as garotas que dividiam o quarto com ela.
- Me deixe ver seus desenhos? - Uma garota alta perguntou, enquanto a pequena garotinha desenhava um vagalume. Ela havia ficado muito feliz por ter encontrado um durante o dia, já que não podia sair à noite.
- Eu estou desenhando um vagalume.
- Sério? Me deixa ver.
- Aqui.
- Ele parece mais brilhante no desenho.
- É porque no desenho ele está no escuro.
- Faz sentido.
Sim, eu me lembro desse diálogo. Bem conveniente, não? A verdade é que eu me lembro dele perfeitamente, porque ele me marcou muito.
- Porque você não brinca com as outras garotas?
- Elas não gostam de mim.
- Eu ouvi elas dizendo outro dia que você é estranha. Mas não entendi porque elas disseram isso.
- É porque eu desenho insetos.
- Mas essa é uma brincadeira muito divertida.
- Você acha?
- Sim. Eu posso tentar desenhar um?
- Pode sim. Aqui, pega.
- Obrigada. Tenho que achar um inseto.
- Alí um. Um grilo ali na frente.
- Estou vendo. Vou desenhar ele.
- Cuidado! chega devagar para não assustar ele.
- Tarde demais, já voou.
Foi a primeira vez que a garotinha brincou com alguém da sua idade.
Eu me lembro bem de como foi o resto daquele dia. Eu me lembro bem de ter brincado com a minha nova amiga. Me lembro bem de ter sorrido bastante aquele dia também. Mas não consigo sentir como se fosse eu naquele corpo. Não consigo acreditar que aquela garotinha era eu. Eu já estive em tantos corpos que nem me lembro a sensação que era ter aquele.
Aquela garotinha com seu caderno de desenhos nas mãos ia andando com sua nova amiga pelo enorme quintal do orfanato. Quando as outras garotinhas perceberam que ela tinha feito uma amiga, foram imediatamente até ela tirar satisfações.
- A esquisitinha arrumou uma amiga tão esquisita quanto ela. - Disse uma delas. Era a mais velha do orfanato. Por ser a mais velha, dificilmente seria adotada, e ela sabia disso.
A garotinha continuou em frente, ignorando as outras garotas, como sempre fazia.
- Não. - Disse a nova amiga da garotinha.
A garotinha parou e viu que sua nova amiga estava encarando a garota má. Ela não entendeu porque sua amiga tinha feito aquilo.
Elas discutiram qualquer coisa que não me lembro e depois daquele dia a garota má não implicou mais com a gente.
Os dias foram passando e a amizade daquelas duas garotinhas foi aumentando. Eu não tenho muitas lembranças sobre esse tempo. Parece que, a cada vez que eu morro, um pouco da minha memória morre junto.
Só me lembro que depois de uns 4 ou 5 meses um casal adotou a única amiga que eu já tinha feito na vida. Ela não queria ser adotada e abandonar a garotinha que a deixou desenhar em seu caderno e foi legal com ela, mas eu me lembro de ter dito a ela para ir. Não valia a pena ficar por mim e ela seria mais feliz com uma família. Me lembro também de ter escondido meu caderno de desenhos nas coisas dela, antes de ela ir embora. Nunca soube se ela gostou do presente. Nunca mais tive notícias dela.
Depois de algumas semanas, eu tive a minha primeira morte.