Minha primeira vez

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Eu não tive uma vida fácil. Desde os oito anos de idade, eu não tive mais paz. Desde aquele dia ensolarado, desde que eu senti meu coração gelar e minha alma dormir, desde que eu tive minha primeira morte. Eu não tive uma vida fácil.

Pensar na morte de uma criança me embrulha o estômago. Mesmo que a criança seja eu, ainda sim, me sinto mal em lembrar. Não foi nada legal morrer daquele jeito.

Eu estava vivendo mais um solitário dia de verão e as coisas não estavam muito boas para mim. Depois que minha única amiga se foi eu nunca mais fui a mesma. Não tirava mais boas notas, não comia direito, não falava com mais ninguém. Era como se minha alma tivesse ido na bagagem dela, junto com meu caderno de desenho.

Eu parei de desenhar.

No dia em questão, eu tinha brigado com Cecília. Depois que minha amiga foi embora, ela voltou a me incomodar. No começo, eu ficava mal, mas, depois de um tempo, eu não me importava mais com o bullying. Afinal, ela estava certa, eu era só uma criança solitária que nunca conseguiria amigos. Naquele orfanato ninguém gostava de mim, e eu já estava ficando velha demais para ser adotada. Meu destino era viver na escuridão, me agarrando desesperadamente a qualquer raio de luz que, casualmente, a atravessasse.

Aquele dia foi diferente. Eu não ouvi calada as ofensas de Cecília. Na hora do almoço, no momento em que ela se aproximou de mim e abriu a boca, eu peguei minha tigela de sopa quente e joguei tudo em sua cara. As freiras vieram correndo assustadas com os gritos da desgraçada, e ela gritava alto mesmo. Todas no refeitório ficaram bastante assustadas, e não é para menos, não é todo dia que se vê uma garotinha fazendo algo assim.

Meu castigo foi ficar 3 dias no meu quarto, estudando. Mas, afinal, isso era mesmo um castigo? Ficar sozinha não era um castigo para mim. Não mais. Eu já havia me acostumado. Ficar sozinha era minha maior diversão. Sozinha, eu imaginava maneiras de fugir do orfanato. Sozinha, eu criava histórias de terror na minha cabeça. Sozinha, eu imaginava todos morrendo. Eu era minha própria companhia. Eu vivia no meu quarto, no terceiro andar daquele prédio velho, e eu gostava de lá. Para mim aquele era o mundo perfeito.

Eu me lembro de ter me pego sorrindo naquele dia, ao lembrar das queimaduras de segundo grau que deixei no rosto de Cecília.

Eu me lembro também de uma voz. Nunca tinha ouvido aquela voz antes. Pensei ter sido coisa da minha mente e voltei a ler a Bíblia que as irmãs me deram.

O último inimigo a ser destruído é a morte.
1 Coríntios 15:26

Aquela voz me chamou outra vez, e agora eu sabia que não era coisa da minha imaginação. Eu olhei ao redor e não vi ninguém. Fui até a janela, mas as outras meninas não estavam lá embaixo. Uma vontade muito grande de pular passou pela minha mente, mas, antes que eu pudesse recuar, senti algo empurrando minhas costas. Eu bati na janela com força e virei, caindo de ponta cabeça lá embaixo. Não preciso dizer que morri, certo?

Nunca soube quem me matou. Talvez fosse a voz na minha cabeça, talvez Cecília se vingando, talvez eu estivesse delirando e me joguei de propósito. Eu nunca vou saber. Mas o que eu nunca esquecerei é a dor e a agonia que senti alguns segundos depois.

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