Faca. Vidro. Remédios. Veneno. Lugares altos. Água. Corda. Rodovia. Morte.
Durante quase um ano, pensei em todas as possibilidades. Eu pensei em todas as opções, em cada uma delas. Durante quase um ano, pensei em milhares de formas de acabar com esse corpo que eu tanto odiava. Pensava em morrer todos os dias.
Chorei muitas vezes nesse período. Eu, uma criança, queria morrer, isso não pode ser algo que uma criança pense, jamais. Mas eu pensava apenas nisso. Era terrível.
Eu não tinha coragem, nunca tive, mas eu sempre procurei a morte. Durante o dia, lutava para me manter de pé e suportar aquelas pessoas tentando falar comigo, e durante a noite eu lutava para conseguir dormir, ao menos alguns minutos, mas a minha mente não me permitia descansar. Minha vida era um inferno. Não tinha mais esperanças. Não sabia o que fazer. A única coisa que eu sabia é que só havia uma saída pra isso, e ela não era nada boa.
Nas primeiras semanas eu estava me adaptando ao novo corpo, mas ainda confusa sobre o que havia acontecido comigo. Eu caí de uma janela e acordei num corpo três vezes maior que o normal, e ainda era de um homem. Eu me cansava muito fácil e não conseguia respirar direito. Meu corpo era pesado e desconfortável, mas depois de um tempo ele ficou mais leve, pois eu parei de comer e não aguentava um dia sem vomitar.
Eu odiava tomar banho, passava dias sem ir no banheiro, não gostava desse corpo, odiava a sensação de sufocamento. Não dormia, não comia, não tomava banho, não tinha uma vida.
Se passaram mais alguns meses e eu estava morrendo aos poucos. "Minha família" me levava ao hospital, chorava e tentava me convencer a me alimentar, dizendo que eu iria morrer. Eu não queria isso, queria morrer logo e me livrar desse sofrimento. Aquela casa era uma bagunça, minha vida era uma bagunça, minha mente era uma bagunça.
Pra todo lado que olhava eu via uma maneira diferente de me matar. Janela alta, eletricidade, escada.
Mais alguns meses se passaram, eu estava esquelética, olheiras enormes, mente vazia, a vida se esvaindo aos poucos. Chegou o dia.
Me levantei cedo, numa manhã quente, estava transpirando, e tive que tomar um banho, contra a minha vontade. Não olhava meu corpo, fazia tudo com os olhos fechados, odiava me tocar. Lavei tudo o mais rápido possível e me vesti. Depois disso, desci as escadas, me segurando na parede, e "minha família" ficou surpresa ao me ver sair do quarto, pela primeira vez naquele mês.
Comi uma fatia de pão, sem falar uma palavra com eles, apenas concordando com tudo o que diziam. Não lembro de uma única palavra.
O relógio na parede marcava 8:30 da manhã, era a hora deles saírem. Se despediram de mim, dessa vez eu os respondi e pude ver a surpresa em seus olhos. Sorriram. Eu não sei o que aconteceu naquele dia, mas no fundo eu era grata por terem cuidado de mim, afinal eles não tinham culpa de nada. Essa foi a última vez que os vi.
Subi as escadas, depois de várias pausas para respirar. Entrei naquele quarto escuro e sujo. abri a janela, o dia estava normal, como o de costume, quente e silencioso. Peguei uma cadeira e me sentei na frente da janela. Por um momento me senti no meu corpo anterior, leve e livre. Senti meu rosto ficar molhado, o que me fez despertar dos devaneios. Fiquei de pé na cadeira e, sem pensar duas vezes, fechei os olhos e me joguei da janela. Iria morrer como da outra vez.
É claro que eu não morri, caí de barriga, não de cabeça como da primeira vez. Senti muita dor pelo meu corpo todo, chorei e gritei muito alto. Estava desesperada e não sabia o que fazer. Tentei me mover, mas estava muito machucada. Podia sentir o sangue se espalhando dentro de mim, e também saindo pela minha boca. Minha vista escureceu e eu apaguei.
Acordei no hospital, com várias pessoas me olhando, ao longe. Eu não sentia nada, não sabia quem eu era. Provavelmente estava sob efeito de anestesia. Fechei meus olhos e apaguei novamente, após ver duas pessoas se aproximando de mim.
Não sei o que aconteceu nesse meio tempo, mas quando eu acordei, estava me sentindo muito mais leve. A primeira coisa que senti ao tentar me levantar, foi uma enorme dor de cabeça.
Eu chorei de dor outra vez, isso já estava virando rotina. Desmaiei e acordei depois de um tempo. Agora estava me sentindo melhor e pude me levantar. Não havia mais hospital, não havia nada. Estava tudo escuro e frio. Não pude ver nada e fiquei muito assustada. Fui cambaleando para trás, tropecei em algo no chão e caí olhando para cima. Eu pude ver as estrelas e a lua cheia. Não sabia como, mas eu tinha saído do hospital, e estava num lugar deserto.
Tentei tatear o chão em busca de qualquer coisa que me ajudasse a descobrir onde estava, quando bati minha cabeça numa coisa dura. Levei as mãos até lá e senti algo familiar. Era um tronco de árvore.
Agora que minha visão se acostumou a escuridão eu pude ver que estava em uma floresta. De algum modo eu fui parar ali. Estava assustada demais para pensar num motivo pra isso ter acontecido. Me sentei com as costas apoiadas naquela árvore, dobrei minhas pernas e abracei meus joelhos, com medo do que estava acontecendo. Chorei por várias horas aquela noite, antes de cair no sono.
Acordei quando os primeiros raios de sol começaram a incomodar meus olhos. Nesse momento eu pude ver, meu corpo estava diferente, eu tinha mudado. Eu não estava com o mesmo corpo, e agora tudo fez sentido. Eu morri e o ciclo se repetiu.
Naquele momento eu tive mais uma prova da maldição que me atormentaria por muitos anos.