Terceiro Lugar! 🏆
Autor: João V. E. Vidal
@Joao_vev
Em um quarto branco de um hospício chamado: Bom Espírito, um velho senhor se levantou da cama com dificuldade, pegou suas ferramentas de artesanato, colocou-as por sobre uma mesa e se pôs de frente a tela de pintura, posta sobre um cavalete de madeira escura.
O homem molhou o pincel em tinta, verde era a cor que escorria pelas cerdas, por alguns segundos hesitou, olhando para a pálida folha de papel a sua frente, mas ao sacodir um pouco o rosto, jogou para fora o pensamento que o mantinha inerte e tocou de leve a face da folha com a tinta, traçando letras cursivas verdejantes pela alvura; na escrita as palavras tais:
O arrependimento de cada novo ano vem me consumindo, se possível fosse apenas morrer aqui, morreria, mas a morte tem fechado os seus olhos para mim, dez vezes tentei me enforcar e dez vezes a corda se partiu, tantas mais eu me envenenei, porém ainda estou aqui, eu sou apenas louco para ele e como dói quando tudo se repete.
Ainda que escrevesse em pequenas letras, ele chegou ao fim da folha, ainda querendo dizer mais, não para que alguém o lesse, mas para ele mesmo, com a esperança de que o desabafo o aquietasse como sempre o fizera. Ansiando para retirar de dentro de si as palavras que o preenchiam o peito, levou a borda do papel, os três dedos que lhe restavam na mão esquerda, no entanto, quando estava prestes a virar a folha, um garoto entrou na sala.
O homem encarou o jovem, do mesmo jeito que o fazia em todas as manhãs, a mesma fúria silenciosa brilhando em seus olhos castanhos, a típica boca semicerrada e murchada pelo tempo, formando uma fina linha de reprovação.
– Está emburrado hoje de novo senhor Abel? Só vim lhe trazer o café da manhã – disse o menino.
– Vá embora, o novo ano vêm vindo – disse Abel, com esforço, pois os remédios que lhe davam para mantê-lo calmo o consumiam as forças. Por isso ele logo se sentou e deixou de lado as palavras adormecidas que pretendia escrever, engolindo-as uma a uma apesar do sabor amargo.
– De novo isso? Sei... o primeiro dia do ano novo é ruim, mas eu não consigo fugir do dia de amanhã você sabe, a não ser que eu morra. Além do mais, o primeiro dia do ano é uma data de esperança, é assim que penso, sempre! – dizia o jovem, enquanto amarrava uma espécie de babador ao redor do pescoço do homem.
O rapaz pôs o prato de sopa e o pão que trazia consigo, em cima da mesa de cabeceira de Abel, conversou um pouco sobre a tela onde o velho senhor escrevera, o incentivou a escrever mais, elogiou sua caligrafia e falou sobre o dia e o trabalho. O homem o observou e o encarou na maior parte do tempo, mas sempre que o jovem se punha a descansar a voz, Abel o alertava: "Saia daqui o novo ano vêm vindo". Contudo, o rapaz sorria e ignorava as crises de fúria e as palavras rabugentas do velho.
– Já estou indo senhor, mas se precisar de mim já sabe, é só tocar o sinete na mesa – disse o jovem.
Naquele pequeno hospício branco, havia pouquíssimas pessoas, e essas incluíam os pacientes, além de duas enfermeiras, o jovem enfermeiro, uma médica e dois seguranças. Ali o velho passava os dias, as vezes em delírios profundos, que o submergiam para dentro de si, faziam-no ter sentimentos estranhos e sonhar com coisas que não existiam, mas pior era quando estava são, pois a realidade lhe trazia lembranças cruéis, lhe fazia desejar a morte, infestava a sua mente com palavras esquecidas, pior ainda, palavras mortas, que o homem afogou na escuridão da mente e deixou lá, na inocência de pensar que ali ficariam.
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Projeto Writing e o Ano Novo - Concurso de Contos
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