Um novo ano para Tobias

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Autora: Apolônia

@AzzurraPietra

Tobias desceu as escadas do sobrado, naquela manhã do dia primeiro de janeiro, e pensava, muito comedidamente, que viver das rendas deixadas por seu pai não era ruim, mas haveria de ter disciplina

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Tobias desceu as escadas do sobrado, naquela manhã do dia primeiro de janeiro, e pensava, muito comedidamente, que viver das rendas deixadas por seu pai não era ruim, mas haveria de ter disciplina. Viver era perigoso, devia sempre ter disciplina.

Abriu um sorriso satisfeito ao ver a rua movimentada da cidade de Piúma, em meses de janeiro não havia erro: as pessoas se acotovelavam nos bares, na praia, nos quiosques e nas ruas.

Era isso que ele gostava, muita gente, barulho, carro passando, caixas de som com sua voz esganiçada. Nunca o silêncio, nunca.

Seguiu para a beira mar, contemplou o Monte Aghá, as pessoas vestidas de roupa de banho e os vendedores ambulantes. Os bares começando a receber seus clientes, garçons ainda limpando as mesas. Caminhou a ermo pela cidade, até a hora do almoço. Sempre disciplinado em seu ritual diário. Quando deu meio dia fez a primeira refeição e depois, em um bar mais popular, sentou para beber e ali ficou até o fim da tarde.

De volta para casa, passou na padaria e comprou lanches, que seriam o seu jantar. Descansou um pouco, banhou-se, vestiu-se, alimentou-se e voltou para a rua. Onde ficaria até a madrugada.

Se desejava ardentemente o movimento externo, não suportava que ninguém vivesse ou mesmo entrasse em sua morada. Nesse espaço que ele pouco ficava, habitava sozinho.

Passado o carnaval, ele seguiu o fluxo de saída dos turistas, sairia do balneário antes que ele ficasse vazio. Voltaria para o centro de Vitória, onde habitaria seu apartamento até o próximo verão.

Escolhera a sua moradia entre a Praça Costa Pereira e a rua do Vintém. Durante o dia o movimento era garantido, à noite nem tanto, a cidade perdia a cada ano seu ar bucólico para se tornar um centro abandonado, mas ele resistia. Havia criado esquemas, vagava de um ponto a outro, conhecendo bem o movimento dos bares, sempre em busca dos mais frequentados e voltava para o apartamento antes que as ruas se esvaziassem.

Em fins de outubro, ele pegou o ônibus e se foi, era hora de voltar para Piúma, em busca do movimento de verão.

Havia alugado um sobrado, em uma rua atrás da principal, da que tinha vistas para o mar. A locação era mais barata, ele, prudente, sempre pensava nessas coisas.

Novembro passou em uma crescente de movimento, era época que ele mais gostava. A cada dia mais pessoas chegavam, mais movimento tinha na rua. Carros com placas do estado inteiro chegavam e também de outros estados, entre eles muitos mineiros. Estes chegavam com família grande, alegres, entusiasmados com o mar e com a vida.

Dezembro tinha ar de festa, era bom, mas nem tanto.

Tobias viu uma mulher pequena encurvada, passar ao longe, acompanhado de um jovem gordo, cabeça baixa. Não gostou do que viu e nem do que sentiu. Virou de uma vez só o copo de cerveja para se livrar da sensação de déjà vú. Firmou o pensamento para não lembrar mais da cena. Pouco depois se divertia olhando um casal, que já bêbado, perdia a compostura em uma das mesas do bar. Seguiu no mesmo lugar até muito tarde.

Quando voltou para a casa, cismou do sobrado vizinho. Por que o imóvel comercial não havia sido alugado para o verão, todo espaço, por menor que fosse, havia ganhado um locador. Para piorar a luz do poste, justo em frete ao sobrado, estava queimada. Se enjoou da cor azul escura dele. Subiu apressado as escadas se refugiando da visão.

Os dias se passaram assim, ficava na rua até tarde e depois apressava-se por não ver o sobrado vizinho, quando voltava para casa.

Estava descendo a escada de sua fortaleza segura, quando se deparou com a mulher minúscula, que andava meio encurvada, seguida de um rapaz gordo, com um rosto bonito, estranho e bonito, que a seguia cabisbaixo. Seu estômago deu mil voltas e ele teve ânsias de vômito. Não entendia o motivo pelo qual aquela dupla lhe causava um impacto tão negativo e uma terrível sensação de repetição.

Na véspera de ano novo ele o passou todo fora de casa, não retornou para o descanso da tarde. Nesse dia se deu ao desfrute de comer e beber bem, em bares melhores do que costumava frequentar. A certa altura se sentiu angustiado, o burburinho de gentes não era mais capaz de lhe trazer paz. deixou de lado a pretensão de ver os fogos, à meia noite, e seguiu para casa.

Surpreendentemente, o sobrado ao lado de sua casa estava aberto, iluminado e movimentado. A quantidade de gente era tanta que as mesas tinham se espraiado para a calçada, dando a alegria necessária para se encerrar o ano.

Tobias se sentiu seguro, ali, ao lado de sua fortaleza, poderia beber e curtir a noite sem preocupação. Quando as pessoas começassem a ir embora ele simplesmente abriria a porta e subiria a escada para seu apartamento.

Ele sentou em uma mesa, única desocupada, e olhou ao redor, todos pareciam muito entusiasmado e bebendo uma bebida de cor variada, servida numa taça alta que parecia uma sombrinha invertida. Indicou ao garçom que queria uma daquelas, logo se sentia tão feliz quanto os outros.

Uma jovem abordada por um funcionário, recebeu uma tarjeta e subiu uma escada estreita que findava em uma porta verde. Tobias inquietou-se com a porta, a moça sumiu por ela. Mais duas bebidas e ele já não cismava com mais nada.

Um rapaz de avental se aproximou e lhe mostrou um leque de pequenas placas.

— Promoção da noite, cada tarjeta dessa é um prêmio. Pode ser um coquetel ou um passe para beber à vontade, no segundo pavimento do bar.

Tobias estava em tão alto grau de entusiasmo que ao pegar a tarjeta, que lhe dava direito a subir a escada estreita e entrar na estranha porta verde, se revestiu de felicidade. Era um sortudo, havia sido agraciado com um prêmio. Sem pensar, subiu eufórico os degraus no momento em que os frequentadores do bar iniciavam a contagem regressiva, para receber o novo ano que chegava.

Quando ele abriu a porta verde, o que viu dentro era horrendo, corpos caídos e o menino gordo que bebia, com alegria infantil, as taças de sangue que a mãe lhe servia. A beleza do menino, foi entendida por ele, era a face de uma bela criança morta, maquiada para o funeral. A mãe velha servia com olhos apaixonados, o alimento ao filho.

Toda verdade se desvendou para Tobias: a mulher havia perdido seu belo filho quando ele ainda era um menino, por magia negra havia feito um encantamento que dava a criança, agora rapaz, uma vida amaldiçoada, que dependia de ele ser alimentando com sangue humano, todo último dia do ano. Esse pensamento havia apenas se completado quando atrás dele o barulho de fogos se juntou ao burburinho de gentes, o ano terminava.

Tobias desceu as escadas do sobrado, naquela manhã do dia primeiro de janeiro, e pensava, muito comedidamente, que viver das rendas deixadas por seu pai não era ruim, mas haveria de ter disciplina. Viver era perigoso, devia sempre ter disciplina.

Abriu um sorriso satisfeito ao ver a rua movimentada da cidade de Piúma, em meses de janeiro não havia erro: as pessoas se acotovelavam nos bares, na praia, nos quiosques e nas ruas.

Era isso que ele gostava, muita gente, barulho, carro passando, caixas de som com sua voz esganiçada. Nunca o silêncio, nunca...

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