Capítulo 2

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Curitiba-PR

Hugo

Mais uma vez bato e ninguém responde. Giro a maçaneta e abro a porta lentamente. Não dá para enxergar muita coisa lá dentro. Está totalmente escuro. Mesmo com a porta aberta, bato novamente para anunciar a minha entrada. A claridade da fresta me permite ver um bolo sobre a cama. Eu suspeito que seja ela. Está em posição fetal como se escondesse do mundo. Não consigo sequer ver o seu rosto. Essa cena é uma angústia sem tamanho para mim. Tento me concentrar nela e esquecer minhas perturbações.

Deixo a porta aberta e entro. Não dá mais para esperar que ela me convide, afinal, já estou aguardando sua boa vontade em falar comigo desde o início da manhã. Já estamos no início da tarde. Não vou perder meu precioso tempo.

— Sarah — Chamo para que ela entenda que já entrei no quarto. Não espero que ela responda, mas percebo que ela se encolhe ainda mais. A cabeça está entre os joelhos. Ela veste um pijama azul de calça e mangas compridas. O quarto está bagunçado, coisas espalhadas por todo lado, talvez ela não permita que as pessoas venham limpar. Apesar disso, um suave cheiro de ervas e raízes e plantas pode ser sentido no ambiente. As janelas, cortinas estão fechadas e o ar está abafado como se não visse a luz do sol há um bom tempo. Essa é a mesma sensação que experimento dentro do meu peito a cada passo que dou em direção a ela. Ela está evitando pessoas. Eu até me perguntaria se não está no início do processo depressivo. Artur, o presidente interino da empresa, o mesmo que nos contratou, garantiu que ela está apenas com dificuldade de aceitar o luto e se recusa terminantemente a assumir a sua posição como herdeira.

Preciso conversar com ela para saber se realmente é o que ele disse. Espero que seja apenas uma garota mimada que se recusa a assumir responsabilidades.

Pelo que investiguei antes de chegar a Curitiba, ela foi acompanhada por um psicólogo, psiquiatra e foi medicada desde quando aconteceu a tragédia. Isso está perto de completar um mês.

Puxo a cadeira ao lado da cama e me sento. Ela continua encolhida. Ao lado da escrivaninha tem alguns medicamentos. Fico imaginando se realmente esteja seguindo as doses corretas. Vejo que a decoração do quarto está cheia de quadros. Há também em outros cantos da casa. Já sei que ela pinta, de acordo com a pesquisa prévia que fiz a seu respeito. Se esses quadros forem seus, devo dizer que é muito talentosa.

Eu continuo a observá-la. Ela continua na mesma posição. Ela sabe da minha presença aqui no quarto, assim como já sabia que eu estava em sua casa. Sua amiga Rina veio conversar com ela mais cedo. Porém, ela se recusou a sair do quarto para nos conhecer. Ela é teimosa e deve imaginar que isso seja suficiente para nos afastar. Não vai funcionar comigo. Conheço bem esses truques de ignorar as pessoas. Uma de minhas virtudes é a paciência, ou como diria a Hana, sangue de batata. É que tenho a grande qualidade de não me deixar vencer pelo cansaço. Ao que parece não é o caso da minha nova amiguinha que começa a se mexer quando percebe que eu continuo sendo persistente em aguardar a sua boa vontade de falar comigo. Ela olha de lado discretamente e volta a esconder o rosto. Hugo 1 x Sarah 0. Depois que ela retorna a sua posição anterior ficamos mais uma hora duelando o nosso silêncio para ver quem vence. Ela deve ter pessoas que a bajulam o tempo todo. Devem insistir para que ela saia ou para que se comunique. Não é o meu caso. Eu aceito a sua condição até que ela passe a se cansar dela. Se existe algo que eu gosto é de desafio. Não entrego o jogo de bandeja. Meus clientes aprendem a lutar cedo por aquilo que desejam, inclusive por sua paz.

Quando por fim ela se cansa de esperar que eu saia, ela novamente me olha. Está mais irritada. Tenta fazer uma cara de brava para me assustar, mas erra feio nessa tarefa porque o que consegue provocar em mim é uma intriga fascinante e me deixa muito curioso para desvendar a sua personalidade. Seus olhos pequenos se estreitam como se fossem capazes de me fazer desintegrar. Devo reconhecer que ela fica ainda mais graciosa quando se irrita. A testa vincada e o pequeno bico quase me tiraram uma risada. Por mais que eu me segure, imagino que ela percebeu meu descontrole porque suas mãos se fecham nos lençóis e ela trava a mandíbula. Eu finjo não entender a sua expressão e continuo vidrado nela. Nossos olhos se encontram por um instante. Eu constato que essa expressão não é de uma princesinha mimada. Ela é uma fera apesar de trazer dor em seu semblante. Eu apoio o meu queixo na mão e o cotovelo na cadeira para demonstrar que não tenho qualquer pressa em sair do quarto. Aproveito e faço também umas anotações no tablet sobre as primeiras impressões de sua personalidade. Ela perde o resto de sua paciência.

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