Capítulo 07

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Sarah

O som da porta desperta o meu torpor e me faz encolher. A vergonha que sinto é tamanha que tenho vontade de sumir. Permaneço com os olhos fechados, mesmo depois de um bom tempo acordada. Ouço a cadeira ser arrastada e sinto alguém sentar ao meu lado. Agora, depois de fracassar mais uma vez, eu não sei como voltar a ser eu. Estou numa espécie de mundo paralelo, como se estivesse suspensa no ar. Não sinto minhas percepções funcionando normalmente. Apenas flutuo entre os mundos.

Com todo esse silêncio do meu acompanhante, já suspeito quem esteja aqui. Alguma coisa aguça a minha curiosidade me faz querer abrir os olhos. Ter certeza de que é mesmo ele. Estranhamente, dessa vez, estou até torcendo para que seja.

Bem lentamente com os cílios ainda trêmulos, eu me arrisco a olhar para o lado. Com a visão ainda embaçada eu vejo seus cabelos, olhos e barba negros como a noite. Aos poucos a imagem vai ganhando nitidez e eu consigo perceber o seu semblante cansado, carregado e preocupado. Ele me observa como sempre, mas não diz nada. Seus olhos passam uma mensagem como se dissesse que ele entende o que eu sinto. Mesmo assim, ele consegue me deixar ainda mais envergonhada da minha fraqueza. Volto a fechar os olhos e sinto uma lágrima rolar pela lateral do meu rosto.

— Sarah — sua voz rouca tem um peso quase doloroso — eu preciso... — fala pausadamente — eu preciso que me perdoe.

Porque ele está pedindo perdão? Aperto meus olhos com ainda mais força e todo o peso da culpa. Não consigo responder.

Eu ouço a cadeira sendo arrastada novamente e abro os olhos para verificar se ele está indo embora. Talvez eu queira que ele fique mais um pouco.

Ele me surpreende ao se aproximar ainda mais da cama e se ajoelha no chão ao meu lado. Tenho vontade de perguntar por que está se desculpando quando eu fui a causadora de todo esse transtorno.

— Eu tinha a obrigação de enxergar o que estava se passando com você — ele começa a falar como se escutasse as minhas indagações — eu não poderia permitir que você desistisse de lutar.

Tenho vontade de explicar que não havia como ele evitar. Como poderia? Mal me conhece.

— Por mais que doa, por mais que seja difícil. Você não precisa ficar sozinha.

Viro meu rosto para lhe entregar de bandeja o meu melhor olhar irônico. Como não estar sozinha? Quem ele pensa que é para saber o que posso ou o que preciso?

— Sozinha... — sussurro. Quem vai poder mudar esse fato?

— Eu sei, parece impossível achar uma saída. Acredite em mim, eu garanto, elas existem. — para ele é fácil dizer, olha a sua pose segura, sua vida rodeado de familiares. O que pode saber sobre sofrimento?— Eu não vou permitir que isso volte a acontecer — ele fala com uma convicção tão grande como se tivesse o poder de mudar o futuro.

— Não há o que fazer. Ninguém pode me ajudar. — dou logo meu recado para que ele saiba que é impossível mudar a minha vida — Não existe nada mais para eu acreditar.

Ele pega o meu braço e eu me assusto. Meu instinto é puxá-lo para evitar seu toque. Ele segura firme e alinha o seu braço ao lado do meu. Os dois braços estão como os pulsos virados em nossa direção. Nós observamos os braços. Eu vejo a cicatriz ainda avermelhada da minha primeira tentativa de acabar com tudo. Ao lado do meu, seu braço mostra uma cicatriz semelhante, mais clara, mas ainda perceptível. Eu fico em choque por um momento. Levanto a minha cabeça da cama para poder observá-lo melhor.

Ele fixa o seu olhar no meu e engole seco. Sem precisar que nada fosse dito, dividimos um olhar de dor, de vergonha e empatia. Ele? Esse homem forte, decidido, seguro, com um sorriso cativante e aparentemente tão feliz? Como é possível que ele tenha superado algo que nos corrói tanto? Como ele consegue ser tão forte?

— Como... — minha voz sai falha, eu engulo e continuo — como conseguiu?— é o máximo que consigo pronunciar.

— Não vou mentir que seja fácil — ele sussurra baixando os olhos como se algo o fizesse buscar forças, depois volta a me olhar — eu vou te ajudar, juntos é possível.

Eu analiso sua face e tento entender sua obstinação em me ajudar. Onde ele busca forças para lidar com tudo isso?

— Quando eu comecei o meu tratamento eu escutei algo que me fez refletir por muito tempo. Eu vou compartilhar com você. Talvez faça alguma diferença.

Eu afirmo com a cabeça, ainda surpresa.

— Sabia que a probabilidade de surgir no mundo uma pessoa exatamente como você é de 1 em 400 trilhões? — Ele ainda está tão próximo, sua voz é tão calorosa — Se você imaginar todo o complô que a natureza teve que reunir para que surgisse uma pessoa exatamente como você, com seus olhos, seu nariz, sua boca, sua pele, a maciez dos seus cabelos, sua arcada dentária ou as complexas marcas de suas digitais... — ele olha para cada pedacinho do meu corpo enquanto fala — Para você surgir, houve uma seleção minuciosa de espermatozoides, óvulo... Naquele momento preciso da fecundação, tantas circunstâncias poderiam mudar tudo... Se você pensar que até no simples fato de sua mãe e seu pai se interessarem um pelo outro ou até na complexa combinação exata dos gametas de ambos que poderiam ser de milhares de formas diferentes... Então, a escolhida foi você. — sua expressão é deslumbre — Já analisou as chances de você não estar aqui nesse mundo? De sequer ter a oportunidade de ouvir o som dos pássaros cantando, o cheiro da chuva, sentir a brisa da praia, o vento, o sol ou qualquer uma das infinitas sensações que a vida nos permite? Você não foi um acaso, Sarah. — Ele fala convicto — Existe um propósito em sua existência. — seus olhos brilham como se sentisse o peso dessa constatação. Essas palavras ferem o meu peito. É um choque de realidade que apunhala fundo a minha alma. Ao mesmo tempo desperta uma revolta absurda dentro de mim. — Nossa vida é um milagre. Não podemos deixar de agir à altura desse milagre todos os dias de nossas vidas.

Nesse momento, uma lágrima desce por sua face. Eu percebo que meu rosto também está banhado pelo choro.

— Eu repito, nossa vida tem um propósito. Existe uma razão para existirmos.

— Não basta existir, Hugo — ele suspira e me olha vidrado novamente. Ele sabe a que me refiro. Que sentido há em existir sem viver?

— Acredito que você será uma boa parceira para as minhas reflexões filosóficas. A filosofia me ajudou muito. — Ele não me julga. Eu me sinto como se tivesse finalmente encontrado alguém que me entende.

— Você ainda não me disse como conseguiu sair desse abismo. Que sentido encontrou para a sua existência? — eu realmente preciso saber que existe uma saída.

— A vida me deu uma rasteira. Uma trágica sacudida e eu não tive escolha a não ser bater de frente com a realidade. — por fim ele cansa de ficar ajoelhado e volta a sentar na cadeira — Eu também passei por perdas como você. Em meu caso, elas me obrigaram a tomar decisões e assumir o controle da minha família. Meu propósito são eles.

— Aí está mais uma diferença entre nós — nem preciso dizer mais nada. Sua expressão de empatia mostra que ele entendeu o recado.

— Vamos descobrir o seu propósito. Algo que faça sentido para você. Está por aí. Nós só precisamos buscar. — Sua convicção quase me convenceu. Apesar da minha descrença eu não tenho alternativa a não ser tentar. A curiosidade ou talvez os novos arranjos que o destino arquitetou me instigam. Até posso me permitir pensar em algo que não seja acabar com tudo.

Não sou covarde. Isso eu tenho certeza. Posso ter medo e alguma insegurança, mais do que alguma, tenho muita insegurança. Eu admito. Nunca tive coragem de arriscar, desbravar ou assumir riscos. Aceitei quando me disseram que seria melhor ir pelo caminho mais seguro. Para terem uma ideia, tenho a habilitação para dirigir e nunca ousei sair por aí guiando um carro. Por todos os lados sempre tive um motorista, o Edu ou o Andrei me levando por onde precisei. Eu permiti, meu medo me fez acomodar. É isso que tem me feito desistir? Eu me acostumei tanto a ter tudo de bandeja que não estou disposta a agir? Se eu não tentar, jamais saberei se sou capaz. Por mais difícil que seja, tomei uma decisão. Não vou fugir. 

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