Hugo
— Podemos continuar com a nossa conversa? — pergunto enquanto me sento ao seu lado.
— Tudo bem — ela concorda, ainda pintado a mesma tela de ontem, agora, porém, tem muito mais formas.
Nessa tarde a Sarah está mais aberta ao diálogo e mais relaxada. Vejo que nem tudo foi desastre durante o jantar de ontem. Tive que ir ao supermercado hoje cedo para nos abastecer de congelados, frios e tudo mais que não precisa de preparo. Independente do quesito comida, o resultado foi melhor do que planejado. Suas risadas ainda ecoam em minha cabeça. Fico muito feliz que ela esteja se soltando. Só devo tomar cuidado com o meu instinto masculino e também com a maneira que ela desperta o meu lado protetor. Ainda ontem fiquei perdido com sua proximidade. Todo cuidado é pouco.
— Podemos começar com você contando um pouco da sua história. Podia me falar como foi sua adolescência, infância.
Ela não responde a princípio, apenas mistura algumas cores na palheta. Parece pensar para responder.
— Normal — fala por fim.
— Eu pedi para me contar, não para avaliar — pisco o olho para quebrar meu tom pretensioso — como eram suas amizades, namoros.
— Rina é a minha amiga de sempre — faço a anotação, mas fico intrigado.
— Só a Rina?
— E tinha o Edu. Nunca me aproximei de outras pessoas.
— O que o Edu representava para você? Como era sua relação com ele?
Mais uma vez ela abaixa a cabeça e volta para a tinta. Deixo-a em seu tempo.
— Ele foi tudo que eu acreditei e quis em minha vida. Ele foi todos os meus momentos de paz, esperança e alegria — Que tipo de relação ela construiu com o irmão? Será que eles tiveram um envolvimento romântico? Estou confuso sobre os dois. Rina ou Edu, qual dos dois? Novamente faço minhas anotações e evito qualquer expressão de julgamento. Deixo que ela continue — Ao mesmo tempo que ele me protegia, também me incentivava a ir além. Ele que me forçou a planejar a exposição.
— Sobre envolvimento romântico, Sarah, como foi sua experiência?
— Taí uma pergunta difícil de responder — coloca o indicador sobre o lábio, pensativa. Que boquinha linda você tem, Sarah! — Digamos que o sentimento era restrito a uma relação e os prazeres carnais a outra — Será que eu estou entendendo bem?
— Eduardo e Rina? Me explique melhor — ela concorda com a cabeça.
— Por mais que eu tentasse, ele nunca me viu como uma mulher, essa é a verdade — pelo que vejo, mais do que a perda familiar, a Sarah perdeu o amor de sua vida — Sempre mantive o status de irmã mais nova. Detestava quando ele me apresentava como sua irmã. Nunca demonstrou que para ele existia algo além disso. Minha única esperança era quando seus amigos faziam gracinha comigo e ele me defendia com unhas e dentes. Eu achava que podia ser um sinal. O problema era que não passava mesmo de ciúmes de irmão.
"Todos sempre tiveram o papel de me proteger de tudo. Minha mãe, Andrei, Edu e até a Rina. Só agora, depois de tudo que aconteceu, consigo entender que acabei restringindo o meu mundo apenas a eles. Parece que suas boas intenções não foram tão benéficas assim" — Parece que ela fez uma descoberta.
— Sei que eles estavam tentando cuidar de você. — amenizo.
— Exatamente, mas o fato de me manterem debaixo de suas asas, só fez com que eu me tornasse frágil, insegura e incapaz.
— Você está longe de ser incapaz, Sarah. Você mal começou a sua jornada. — não se preocupe vamos quebrar todas essas correntes — veja só, acabei de perceber que vir a essa chácara comigo, foi um passo imenso para você. Eu não fazia ideia de seus medos e insegurança. A androfobia é real e você enfrentou. Quanta coragem precisou para fazer isso?
— Muito mais do que possa imaginar — ela enfatiza.
— Porque você não trouxe a Rina? Ela é sua namorada? — Não consigo evitar a pergunta que ainda faz parte de uma incógnita em minha cabeça.
— Ela... acho que eu queria provar para mim mesma que era capaz — meu sorriso deve tê-la contagiado porque ela também abre um sorriso tímido. — Ela está sempre comigo, me protege. Ela me conhece melhor que ninguém. Não tenho uma palavra para nomeá-la. Namorada definitivamente não. Talvez uma amizade com alguns bônus. Nós conseguimos algumas maneiras de acalmar nossos desejos.
— O desejo que sentia por Edu, Rina aplacava, é isso? — Corpo de Rina, alma de Edu, seria isso talvez...
— Meu sentimento por Edu estava além do desejo, era mais que isso — vejo seus olhos flutuarem ao falar do suposto irmão — eu sempre queria tê-lo por perto, ouvir suas piadas e brincadeiras, seus abraços — era amor.
— Com o tempo, seu coração vai encontrar uma forma de substituir o espaço do Eduardo. Possivelmente alguém que te complete de corpo e alma. Aí você não vai precisar se dividir. — Não sei se acredito mesmo em minha previsão, mas gostaria muito que Sarah pudesse ser amada e se sentir completa. Ela com certeza merece.
Ela não tece qualquer comentário, mas me observa atentamente.
— Gostaria de falar um pouco sobre sua infância?
— Eu... não me lembro de muita coisa antes de chegar aqui. — fala sem jeito. Opa! Como assim? Ela chegou aqui por volta de 9 anos... Tem algo obscuro ai...
— Talvez eu possa te ajudar. — ela não parece tão disposta a aceitar — Vamos tentar uma técnica de relaxamento. Feche os olhos e limpe sua mente. Mesmo que não seja possível trazer lembranças do passado, é possível expandir a sua mente — ela me olha em dúvida. Eu fico sério e tento transparecer a minha empatia. Mostro que pode confiar e que quero ajudá-la.
Então ela fecha os olhos e eu espero que relaxe.
— Pense em um lugar qualquer. Você está caminhando, caminhando por uma estrada, avista algo à sua frente. O que ver Sarah? — Ela fica quieta por um tempo.
— Vejo uma floresta.
— Ótimo. Agora ande tranquilamente. Você vai me descrever como é o local, como se sente, tudo que se passa.
— Eu vejo uma floresta escura, é noite. Talvez seja um pântano. Eu estou sozinha. Estou andando para encontrar alguém. — ela começa a ficar com a respiração mais curta, passa para ofegante e agitada. — Todos desapareceram. Estou sozinha — ela murmura inquieta — Algo me puxa para baixo, minhas pernas estão presas, não consigo sair.
— Respira, Sarah. Do que você tem medo?
— Todos desapareceram. Eu fiquei sozinha, não adianta gritar. Ele vai chegar e eu não consigo sair dessa lama. Não tem ninguém para me proteger.
— Quem é ele?
— Um monstro, seus olhos azuis, cheios de raiva, seu corpo cheio de pelos — Ela treme.
— Porque você mesma não se defende?
— Eu? — ela mostra surpresa e aperta ainda mais os olhos — eu... eu não consigo. — Ela está apavorada
— Sim. Você pode. Você não é diferente de ninguém. Vai aprender onde encontrar a sua força.
— Eu tenho medo — admite, ainda agitada.
— Todos temos medo, Sarah. O medo nada mais é do que um mistério preso ao nosso passado. Só precisamos encontrar cara a cara com ele e aprender a desvendá-lo — Ela para ao me escutar, está voltando da ilusão que criamos.
Abre os olhos.
— Eu posso te ajudar a desvendar esse medo. Você não vai mais depender de ninguém para enfrentar os seus monstros.
Ela me olha atentamente. Existe medo em sua expressão, mas também existe desejo de vencê-lo. Vamos encontrar o caminho.
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Minha Alma - Degustação ( Livro Completo No Site Da Amazon)
RomanceDuas pessoas marcadas pelo destino. Uma atração irresistível em meio a todas as impossibilidades. "Às vezes a vida nos dá uma rasteira. Acabamos caindo em abismos que parecem não haver mais saída. É nesse momento que o mais improvável sentimento faz...