1810
Eu me atrasarei, ao menos, uns vinte minutos para o jantar. Falta passar por uma plantação de tomates e, mais adiante, por uma estrada de terra. Nessas faltas de pontualidade com a família, a minha mãe pensa em arrancar a minha cabeça. Nas primeiras vezes, aceitou o fato do meu trabalho ser importante, contudo, "é estressante não ter dado à luz filhos pontuais com algo relacionado à família". De fato não a irrito por querer, prefiro uma convivência pacífica e... morando distante é melhor. Ela não entenderia que eu tenho as minhas obrigações sendo um detetive, pois ao seu ver a família é sempre em primeiro. Certo, mamãe deveria dizer isso aos meus superiores. Duvido que teria culhões para enfrentá-los. As regras do campo não são as mesmas da cidade, além do mais em uma cidade num outro estado. Eu gostaria que ela me compreendesse assim como compreende Valquiria.
Franzi a testa, olhando ao redor.
É bem estranho a plantação na qual estou de passagem está escura, algo incomum de acontecer. Sempre há uma lamparina acesa, seja no meio do caminho ou na velha casa da plantação. Faz um tempo que não atravesso essa estrada à noite, ou no breu, e solitário. Caso o cavalo não estivesse comigo, poderia dizer que também estaria sozinho. Melhor junto do animal irracional do que apenas ao lado da minha sombra. Esse silêncio é sufocante, embora estejamos a céu aberto, a minha garganta se fecha e começo a ficar nervoso. Na plantação, dizem, sempre acontece algo ruim. Eu costumava caçoar, mas esta noite definitivamente não está para brincadeiras. Não sei o que virá a seguir e isso me causa um certo tipo de pânico. Para se ter alguma noção, nem mesmo grilos cantam nesta fatídica noite. Tudo parece tão distante que faz com que eu me questione se é uma miragem coletiva, existindo na verdade aqui apenas capim ao invés de tomates.
um conselho, garoto, de um velho homem do campo. jamais atravesse plantações sozinho.
principalmente à noite.
o perigo ronda. você nunca estará seguro.
Tomo um susto ao ouvir um ronco, ao longe, grotesco demais para ouvidos sensíveis como os meus aguentarem. Eu teria chutado ser um cachorro velho se eu não conhecesse os ruídos de um cão idoso. O que ouvi vai além disso. Novamente, o ronco. Dessa vez mais alto, agora com vozes infantis misturadas ao de um cão idoso morrendo. Essa é a única forma que consigo descrever o ruído que escuto, sem sentido para igualar com o som horrendo. Paro o cavalo, ponderando seguir ou dar meia volta e partir. Talvez se eu aguardasse, o suposto perigo esvaísse. Ou eu poderia ir bem devagar, cautelosamente para que a criatura até então desconhecida não nos notasse. Belo plano, meus amigos, imagino que dará completamente errado. Um equívoco descuidado. Peço perdão, mentalmente, a minha mãe pela falha na pontualidade.
Eu precisarei ser cuidadoso, aguardei dois segundos antes de tentar forçar o cavalo a caminhar; mais cinco segundos para descer e puxá-lo. Faltava bem pouco para que o animal subisse em minhas costas e ordenasse que eu fosse mais rápido.
tolo, ingênuo, como um bom humano, deixei o instinto do cavalo de lado. mal eu lembrava que estes são bons em perceber as coisas.
Ficamos num silêncio quase que absurdo, tomados pelo medo do desconhecido. Se tivéssemos a certeza de que o barulho fosse de um cachorro idoso, certamente eu não teria de forçar o meu próprio cavalo a andar. Mas eu ouvi os gemidos de crianças também, em um coro, e isso está muito longe do normal.
"Ite domum." O ronco se tornou um grunhido mais leve do que a primeira versão, mais baixo e melódico, embora a essência de cão e crianças não tenha se esvaído. Demorei cerca de três segundos para perceber que não ouvi uma fala propriamente dita, foi na minha cabeça. Arrisco a ideia de ficar imóvel por algum tempo, talvez evitar que o meu cheiro se espalhe no ar. O cavalo notou o perigo, logo permaneceu quieto ao meu lado. Mesmo embora, eu sei, esteja mais assustado do que eu. Se correr é pior, amigo, ao menos próximos conseguimos descobrir qual criatura é a dona das múltiplas vozes. Normalmente a visão que Deus me deu é ruim de longe, mas não posso dizer se continuará assim por muito tempo, quando o medo tomar conta completamente. Estou assustado, evitando transparecer assim como aprendi nos meus anos de detetive, mas olha que estou no ponto de surtar. O medo às vezes cria um homem justo, no meu caso ele cria um covarde que procura se esconder na coberta mais próxima. Eu sou corajoso quando sei que estou lidando com humanos, esse caso torna-se uma exceção. Talvez Billy seja mais sensato?
"Tom." Novamente, ouço a voz desfigurada. Dessa vez, para o meu alívio, fora da minha cabeça. Ou para minha desgraça, convenhamos, já que estarei correndo um perigo real se for de verdade o que estou passando. Sinto-me um lunático. "Doleo, sed domum eo." Posso jurar que as sombras, apesar de poucas, se mexeram. A lua não poderia fazê-lo, pois ainda não está no seu ápice. Talvez daqui a duas horas. Saber um pouco de astros nunca foi tão triste quanto agora, pois já retirei essa esperança do meu ser. "És tu... um macho?" A voz pareceu ter se ajustado para o meu melhor entendimento, pois pouco sei sobre línguas mortas e uma voz horrenda falando não ajuda de nenhuma forma.
"Falas comigo ou com o animal?" Arrisquei-me.
"Todos nós somos animais." Sua voz ecoou na minha mente, fazendo eu sentir um calafrio desagradável. "Ou você é feito de areia e argila por debaixo dessa camada de pele pálida?"
Engoli o seco.
Eu, de fato, não esperava por uma resposta tão simples e direta.
Curioso, virei lentamente para ver como era o dono da voz, embora sentisse um nervosismo crescente no meu peito. O pouco do brilho lunar foi o suficiente para me deixar de garganta seca ao deparar-me com a vista desumana do ser que se comunicou comigo. Dono de um corpo com dois metros de altura, este ser nunca seria considerado bem-vindo na sociedade por seu formato desfigurado. Nem humano, nem cachorro, nem um boneco de pano para ter as costuras que tem no rosto. Então o que ele poderia ser? Ou ela. Espanto-me com sua aparência, ao mesmo o pouco que consigo ver. Estou paralisado por causa do medo, eu não sei o que ele fará a seguir. Pode pular em nós dois a qualquer momento e nos comer, ou nos ignorar. Embora a segunda opção seja a menos viável, eu estou rezando por ela.
"Vade retro, equus." Em súbita resposta, Billy rinchou e começou a galopar para onde era nosso destino final. Deveriam tê-lo treinado melhor, pensei, para que não abandonasse o irmão do seu dono! Principalmente em circunstâncias macabras onde o fim da vida é uma hipótese mais digna de se crer. Entretanto, parte de mim, ainda sim, gosta da hipótese de que ele foi buscar ajuda... que nunca chegaria, diga-se de passagem. Ou que chegaria tarde demais. A criatura olhou para mim com o seu único olho esquerdo - já que havia somente uma cicatriz onde deveria estar o direito, sem dar pistas sobre o que se passa pela sua cabeça. Percebi o tamanho da sua mão quando me puxou para cima do ombro, que deu quase uma volta completa no meu tórax. Quase trinta centímetros de mão é fácil, amigo. Quero ver se sustentar em um metro e setenta de altura! "Auribus teneo lupum... Eamus ad mea domus... Vamos para minha casa agora." Resmungou.
Decidi que não adiantaria fazer força para me libertar, eu acabaria borrando as minhas calças no ato. O esforço de gritar por socorro também seria em vão, surpreendi-me por ter aceitado tão fácil esse cruel destino. Cá entre nós, o que realmente me fez desistir foi a sombra falha que vi na plantação. Causou-me tanto pavor quanto uma abelha ao meu tio materno. Uma figura pálida, de terno azul-marinho e gravata listrada, encara a situação com uma expressão séria. Orei naquele momento intensamente, para que aquele ser tenha uma boca como eu, e só não está visível por causa da falta de luz.
"Carpe noctem." Dissera, acredito eu, dentro da minha cabeça, levantando um único dedo para perto da boca. Um sinal para fazer silêncio.
Eu sabia essa frase...
Ele disse para eu aproveitar a noite.
(N.T.: tradução das frases, latim para português)
Ite domum: Ir para casa
Doleo, sed domum eo: Desculpe, mas vou para casa.
Vade retro, equus: Vá embora, cavalos.
Auribus teneo lupum: Segurando um lobo pelas orelhas, expressão bastante popular na Roma Antiga. A expressão era usada quando a situação era insustentável, e particularmente quando fazer nada ou fazer alguma coisa para resolver um problema era igualmente arriscado.
Eamus ad mea domus: Vamos para minha casa.
Carpe noctem: Aproveite a noite.
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Delírio (I - Coleção Sangue Vil)
Paranormal• Vencedor do Wattys 2022! • "Eu crio vida pelo o meu sangue." Disse, pondo o pulso centralizado com a plataforma, deixando gotas de sangue caírem no meio por três segundos. "E o meu povo foi ensinado a sempre temer o sangue antigo." Depois pegou a...