Immutable

Pilot: Bloody glass

A Terceira Guerra Mundial teve fim oficialmente em 4 de agosto de 1895.

Logo após, cientistas realizavam experimentos mesclando genes animais - majoritariamente caninos e felinos - com o DNA humano numa tentativa desesperada de repovoar a Terra. Os primeiros anos se seguiram em paz com novas espécies surgindo a medida que os países se reerguiam gradualmente.

No entanto, assim como todas as outras intervenções do homem na natureza, o resultado veio a refletir em mais uma separação de classes que teve seu estopim em 1984. Descobriram tardiamente que a raça pura se portava de forma agressiva em determinadas situações, decidindo exterminá-la para estabelecer o mundo entre híbridos e betas.

A espécie enfrentou ondas de massacres, se refugiando como na época da inquisição. Os governantes tampouco os cidadãos se importavam com o sangue dos inocentes escorrendo pelos dedos. Crianças, mulheres ou homens, o único critério para atirar era pertencer à linhagem pura.

A distinção entre as naturezas não cessou em mortes injustificáveis, passando a se acentuar veladamente. Enquanto uns possuíam todos os direitos previstos pela legislação, o restante lutava para, ao menos, conseguirem moradia e emprego, ou então, obterem uma defesa pública que não fosse tendenciosa quando acusados de crimes hediondos.

Fruto de uma hibridização, Harry Styles nunca havia sofrido a discriminação na pele. Possuía uma casa aconchegante na capital da Estônia no mar Báltico, Tallinn, e era um dos veterinários responsáveis pelo bem estar dos felinos no maior santuário da Europa Setentrional, o Instituto Saint Barking, que tinha como principal objetivo a reabilitação de animais silvestres após serem vítimas de maus-tratos e exploração, sendo tratados e, na maioria dos casos, reintroduzidos em seus habitats naturais.

Entretanto, nenhuma dessas conquistas supriam a solidão que o consumia todos os dias. A ausência de um parceiro definitivo fazia-o se definhar durante a madrugada cogitando cenários desagradáveis, resultando em enormes bolsas escuras abaixo dos olhos esmeraldas.

Martin, Dorian, Sebastian, Isaac, Sander foram alguns de seus pretendentes no passado, sendo o mais recente cerca de quatro meses atrás. Embora colecionasse sentimentos bons em suas experiências, nenhum desses alfas o conquistava integralmente ao ponto de cravarem os caninos em seu pescoço.

Harry almejava a maldita mordida que todos clamavam ser a eterna ligação entre almas gêmeas. Ansiava se sentir conectado a alguém - fisicamente e emocionalmente - e torcia para estar no caminho certo.

O ômega voltava para a casa após um dia exaustivo no trabalho. Quando Aivo retirou o jaleco antes das quatro horas da tarde, ele soube que teria o turno estendido na unidade de recuperação.

Após um mês lidando com aquele evento, a lixeira revirada do lado de fora não era mais uma surpresa. Harry passou a deixar um punhado de comida e água em recipientes médios, desconfiado sobre um possível animal que se esgueirava pelos arredores quando ele não estava presente.

Mas agora, além de se alimentar devidamente, o ladrãozinho continuava a vasculhar dentro dos sacos pretos, contaminando a calçada com restos orgânicos e tornando a fachada feia e desagradável.

Styles reclamava no telefone com sua mãe sobre o lixo que teria de recolher pela manhã quando cruzou a sala de estar. Os sapatos foram abandonados ao lado da mesinha de centro antes de suas costas encontraram o estofado macio do sofá em um pequeno salto.

─ Não, mamãe. Eu não vou chamar o controle de animais somente para resolver esse problema. Sim mas- é, eu sei. Eu acho que é algum gato abandonado e faminto. Farei uma armadilha para tentar pegá-lo e-

O som de um copo se estilhaçando no chão da cozinha fez Harry entrar em alerta. Sentando-se cautelosamente, o ômega pediu para que Anne ficasse em silêncio por alguns instantes. Quando escutou outro barulho semelhante, seus dedos já tateavam o fundo falso que havia atrás da estante de livros.