Um grito agudo e profundo cortou a torrente de sons que compunham o caos, o timbre conhecido envolvendo meus soluços abatidos em um abraço cálido ao passo em que a distância entre nós alargava-se. As chamas ardiam ruas inteiras, as armas afiadas e o sangue, que provocava manchas fortes sobre o sempre escuro cinza da avenida, apenas fortalecia ainda mais o clamor desesperado, mas as gargalhadas sórdidas revelavam que adorariam prolongar o terrível suplício.
O grito se estilhaçou em algo maior, transbordando terror antes de silenciar-se deixando uma quietude letal em seu rastro, que foi seguida por um rugido muito mais próximo, apertando-me firme contra o peito e enterrando suas unhas no fino manto que me cobria, conforme gotinhas salgadas atingiam minha cabeça e uma luz cintilante engolia-me apertando seus grilhões.
Um último clamor elevou-se preenchendo o ar, desta vez queimava minha garganta com a amargura sólida que ocupava meus pulmões.
Lancei-me para cima com as mãos agarrando o tecido grosseiro do saco de dormir. Nenhuma chama avassaladora ou massacre desumano invadindo a cidade. Havia sido um sonho, percebi ao piscar mais uma vez, as imagens focando lentamente com as elevações apressadas de minha respiração, uma barraca bagunçada, olhos castanhos, cabelos ruivos que formavam uma cascata de cachos sobre ombros delicados.
Mas o cheiro pungente e metálico do sangue que se agarrou às minhas narinas fez com que as ilusões retornassem tão vívidas que eu ainda poderia estar sonhando, ou sendo carregado mais uma vez por entre as súplicas e os murmúrios chorosos. Fechei os olhos com força e meneei a cabeça desejando que o sofrimento cessasse.
_ Teddy, você precisa acordar_ Eu podia ouvir a voz rouca esgueirando por minhas memórias, ancorando-me mesmo que ainda distante_ Respire fundo _Segurei aquele fio de segurança com firmeza, deixando que me guiasse até a lucidez_ Abra os olhos. _ Obedeci, pura memória muscular diante do comando primitivo. E vi que Caio estava diante de mim, as mãos em meus ombros, o rosto congelado em uma expressão concentrada, os olhos fixos nos meus.
Afastei suas mãos e Caio me deu mais espaço, mas ainda alerta.
Baixei os olhos tentando concentrar-me na realidade e percebi que o cheiro pavoroso tinha origem a partir das bandagens improvisadas já manchadas em vermelho que cobriam cortes grotescos espalhados por meu corpo. A dor latejante era estranhamente familiar, como algo pelo qual eu tenha nascido com o propósito de suportar, mas isso não a tornava mais confortável. Deitei-me novamente gemendo com o esforço de movimentar os membros sensíveis e Melyssa adiantou-se imediatamente percebendo meu desconforto, seus olhos celestiais escureciam para dar espaço a uma dura tempestade trovejante.
_ Beba isso. Vai ajudar com a dor_ Ela entregou-me um copo com conteúdo escuro encolhendo o nariz_ É melhor você virar de uma vez.
Fiz como ordenado e entornei a bebida que desceu queimando por minha garganta, fazendo proceder um acesso de tosse enquanto Caio liberava uma risada preguiçosa.
_ Precisa tomar outro gole para que eu possa registrar essa cena. Eu estava despreparado. _ Fiz um gesto vulgar que fez as gargalhadas ficarem estrondosas, deixando-o quase sem fôlego por entre as lufadas de ar.
_ Então, vai nos contar por que precisei pendurar algodão por seu corpo durante as últimas horas? Ou teremos de seguir a trilha de sangue até o interior da floresta para descobrir? _ Melyssa estava finalmente impaciente, interrompendo a distração com um estupor de silêncio.
_ Horas? Durante quanto tempo exatamente estive apagado?
_ Não conseguimos saber com certeza. _ Caio havia mudado completamente a feição, expressando preocupação diante da testa franzida e os lábios contraídos. _Mas você estava fraco demais com o esgotamento de sangue, acredito que foram por volta de doze horas.
Pisquei. Eu não me lembrava da dor ter sido tão avassaladora, mas a julgar pela quantidade de bandagens, e o tom negro de minha pele muito mais claro com a ainda presente palidez, minha percepção estava errada.
_ Acho que os cortes foram mais profundos do que eu havia imaginado._ Levantei os olhos para encontrar os de Melyssa e dei-lhe o que ela havia pedido. Descrevi meu encontro com o espectro enquanto meus amigos aguardavam concentrados pela conclusão.🧸
_ Que conversa é essa? _ Melyssa explodiu. Ela estava ficando realmente irritada com a direção que o diálogo seguia._ Espectros e metamorfose, isso não é uma história para crianças.
_ É claro que não, mas precisa acreditar, ainda não faz sentido pra mim também._ Caio suspirou, passando a mão pelos cabelos e arrepiando os fios pretos._ Mas é a verdade.
Melyssa deu um passo para trás meneando a cabeça em negação, e observei enquanto se lançava em uma corrida para a abertura da cabana, Caio fez menção de acompanha-la, mas levantei a mão em um gesto para que impedisse o movimento e permanecesse sentado.
_ É melhor que ela tenha um momento para entender tudo.
Caio se deitou finalmente relaxando os músculos depois que desabei barraca adentro algumas horas atrás.
_ Acho que todos nós teremos de ser jogados em algum manicômio depois das loucuras que você incitou.
Liberei um som abafado, o mais próximo de uma gargalhada que exalei desde o momento em que acordei na floresta dois dias atrás, e acreditei, pela primeira vez, que enfrentar todos os riscos seria muito mais fácil do que eu havia passado anos imaginando.
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Herdeiro Da Morte
FantasíaSinopse: Uma ameaça percorre as entranhas de um reino de magia e, a única esperança de qualquer salvação permaneceu adormecida em um mundo bem distante daquele em que foi concebido. Mas agora ele está pronto para voltar por seu povo e enfrentar o te...