capítulo 9

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A viagem fora longa. Observei enquanto monitores e campistas separavam-se entre os ônibus enfileirados e, lembrando-me de permanecer furtivo, afundei no assento de um dos veículos dedicados aos funcionários e fingi estar dormindo por todo o caminho, prestando atenção a cada parada, contando-as e lembrando-me das orientações oferecidas por Melyssa. Ela havia esclarecido que já estaria no local quando eu me retirasse de meu transporte.
E ela estava. Esperando-me diante de um edifício sofisticado, posicionada em meio ao jardim de entrada que seguia até as enormes portas duplas brancas, arregalei os olhos ao notar o requinte da estrutura, uma profundidade de diferença imensa com relação à residência de Caio, não que fosse modesta, mas a distinção referente a essa grandiosidade é notável.
- Feche a boca garoto, seu queixo está quase tocando o chão. - Melyssa aproxima-se perdida em uma risada abafada, suas malas já fora de vista.
- Você mora aqui? - Olho ao redor ainda impressionado, as enormes janelas aparentam dar ao ambiente interno um confortável clima natural. - Não posso morar em sua casa. Não estamos considerando seus pais?
- Não se preocupe- Ela está diante de mim agora, um sorriso iluminado cobrindo seu rosto emoldurado pelas molinhas ruivas que despencam como cascatas até a metade de suas costas.- Eles não vivem em Flowquins, apenas eu. Pela proximidade com o acampamento, essa costumava ser nossa casa de férias, mas passei a morar aqui depois que comecei a frequentar a faculdade da cidade. - Melyssa encontrou meus olhos, suas feições suavizadas em algo próximo a animação. - Vamos entrar.
Caminhamos os últimos passos através do jardim e atravessamos a soleira da porta. Eu estava certo, as imensas janelas dispostas diante da sala de estar permitiam que os raios solares preenchessem o espaço com delicadeza, destacando principalmente o volumoso divã negro posicionado diante da lareira marmorizada. Segui Melyssa até as escadas, as botas de Caio que abrigavam meus pés, afundando no tapete de pelos enquanto eu observava a maneira precisa como os móveis foram dispostos perfeitamente para realçar o deslumbrante piano branco que deleitava-se com a iluminação protuberante que o alcançava, quase esquecendo-se do local restante.
- Vou te apresentar a seu quarto, e você pode tomar um banho enquanto procuro algo para jantarmos. - explicou Melyssa ao alcançarmos o andar superior, ela espiou brevemente por sobre o ombro, levando os olhos a pequena mochila alaranjada ainda presa ao meu ombro contendo algumas poucas roupas de Caio - Conseguiremos vestimentas novas pra você pela manhã. - Melyssa parou ao atingir uma das portas brancas alinhadas pelo corredor, torcendo a maçaneta e desaparecendo dentro do quarto antes que eu pudesse acompanha-la. - Diga-me se precisar de algo mais.
- Tenho certeza de que isso é bem mais do que posso precisar. - Meus passos ecoavam pelo espaço quase vazio ao colidirem com o porcelanato reluzente. Depositei a mochila sobre a cama e sentei, acomodando-me nas almofadas aveludadas, vendo Melyssa depositar pequenas ataduras e recipientes no armário que ocupava toda a parede adjacente. - Porque está fazendo isso? - Ela se virou franzindo a testa diante do questionamento, mas não apresentei-lhe maiores explicações, não era necessário, eu havia me questionado a respeito disso algumas vezes desde que saímos daquele acampamento, não era algo comum, afinal, Melyssa sequer me conhecia até dois dias atrás quando sangrei por toda a barraca antes que ela fechasse meus cortes com algumas ataduras. E, no dia seguinte, resolveu que poderia abrigar-me em sua própria casa.
- Fiz um juramento certa vez. - A memória a confinava em um estado de estupor. Sua voz distante e os olhos que deixavam os meus, desfocados, com a lembrança intensa demais - Jurei que jamais deixaria que qualquer pessoa sofresse diante de mim. Não se eu pudesse evitar. Então, quando o vi cambaleando cabana adentro, esforçando-se para se levantar enquanto tentava explicar a situação, quase se desculpando por perder tanto sangue - Ela se encolheu, e me arrependi imediatamente por ter feito a pergunta. - Simplesmente não pude deixar de ajuda-lo.
Minutos escorreram pelo silêncio sufocante esperando pelo impacto de uma reação, mas Melyssa permaneceu inerte, os músculos tensos e lábios comprimidos. Até que finalmente me levantei, resmungando algo sobre lavar a sujeira de dois dias inteiros e retirei-me para o banheiro.

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Foi apenas quando permiti que a água morna do chuveiro tocasse minha pele imunda e sensível que percebi a porção descomedida de tensão acumulada por meus ombros. O incessante tamborilar de pensamentos continuava a rodopiar em minha mente, fisgando uma pontada de dor em minha têmpora vez ou outra. Eu não havia tido tempo para pensamentos latentes. Até agora.

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