capítulo 10

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Uma expressão assassina emoldurou o rosto pálido e translúcido em algo estarrecedor que esteve visível apenas alguns segundos antes que desaparecesse junto do espectro.
As imagens materializavam-se diante de meus olhos ao passo em que eu retirava com cuidado as velhas ataduras para lavar devidamente os ferimentos antes que Melyssa pudesse medicá-los novamente e acomodar bandagens limpas em minha pele maltratada. Eu havia estudado seu trabalho perfeitamente realizado antes, e me fascinei com a precisão daqueles dedos delicados ao executar a tarefa.
Não me lembrava de Caio ter mencionado esse talento antes, mas ficou claro de que ele estivera ciente ao levar os medicamentos até ela imediatamente. Eu gostaria de poder perguntar a respeito da habilidade, de como Melyssa a havia adquirido, mais especificamente. Mas sua relutância ao responder meu ultimo questionamento, a dor gravada em seus olhos repentinamente opacos, o torpor nos movimentos seriamente paralisados... Impedia meus impulsos de fazê-la retornar àquele passado certamente terrível.  Eu mesmo conhecia o terror alucinante de ser encarcerado pelas raízes insistentes dos acontecimentos remotos e inquietantes.
Eu me sentia quase inclinado a considerar os incidentes dos últimos dias uma incrivelmente estranha coincidência, mas, julgando a forma como havia chegado até ali, em primeiro lugar. Jamais poderia pensar que o universo se tornaria tão preguiçoso. Isso não evitava, entretanto, a dúvida que se alastrava perfurando, infindáveis, as barreiras de racionalidade compostas de forma impecável para proteger a verdade que espreitava por trás, sagaz e irrevogável. Mas, ainda assim, assustadora. Tanto que mal podia suportar a pergunta que se repetia no fundo de meu ser: por que agora? Haviam se passado anos demais desde a última vez em que havia sentido aquele mesmo formigamento que sentira na colina. E não havia reunido coragem suficiente para questionar.

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Abri a porta, deixando que o vapor produzido pela água quente do chuveiro escapasse do elegante banheiro em mármore branco e encarei a garota parada ali, panos brancos enroscados nas mãos.
Os olhos como as mais raras joias de diamante azul pairando sobre os meus, descendo. Onde a toalha de um cinza escuro que eu havia enrolado baixa na cintura se encontrava, e subindo outra vez, um leve rubor contornando as sardas suaves. Deixei que o canto de meus lábios se curvassem em um sorriso ferino, provocando um revirar daqueles olhos, finalmente vorazes outra vez.  
— Desisti do jantar e me resolvi por uma pizza, chegará em quarenta minutos, tempo suficiente para cuidarmos de suas feridas. — Assenti, e ela acrescentou rápido, como se estivesse se esquecendo — Você gosta de pizza, certo?
Não me preocupei em explicar que eu sequer sabia o que a palavra significava, então apenas respondi, contornando o quarto e chegando até a cama.
— Claro.
Ela se adiantou até as gavetas, agarrando calças de moletom e uma cueca, lançando-as em minha direção.
— Vista. — Melyssa caminhou até a porta, oferecendo-me alguma privacidade— Buscarei alguns tônicos no andar debaixo. — E partiu, fechando a porta atrás de si. O som de suas botas percutindo as escadas cobria o espaço conforme eu obedecia.
Joguei a toalha por sobre o ombro ao terminar, seguindo até o banheiro novamente a fim de estendê-la. Mas parei ao cruzar com a imagem no espelho. Analisei os músculos marcando minha pele escura, jamais estimulados, mas ainda assim provocando linhas fortes no abdômen, nos braços.  Franzi o cenho para o que aquele corpo poderoso significava, mas balancei a cabeça, não me permitindo cogitar o assunto mais uma vez. Meus olhos subiram pelo reflexo, devagar encontrando aqueles olhos, eu me lembrava bem deles.
A pele de um bronze arrebatador tornava-se ofuscante com a fresta de luminosidade que escapava pelas cortinas pesadas, transformando-a quase em um dourado brilhante, mas os olhos... Eram a visão mais espetacular, o avelã destacando-se ao redor das pupilas dilatadas, e o sol da tarde, abençoando aquele momento, fazia com que os pequenos detalhes dourados tornarem-se fartos e nítidos, conforme dançavam com alegria e esperança. E amor. Era amor naqueles olhos, o mais puro e absoluto amor. Os braços abrigavam-me enquanto sua voz doce, terna e determinada preenchia-me, aquecendo minha alma jovem.
Uma risada provocativa cortou meus devaneios como uma lâmina, e virei-me com um pulo.
— Sabia que se orgulhava desse corpinho— Ela pronunciou a palavra com deboche explícito— Mas não sabia que era do tipo que baba diante de um espelho.
Sorri, disfarçando a pontada no peito causada pela lembrança já quase nublada e avancei para o quarto novamente.
— Estava apenas pensando em como seria adorável ter esses dedinhos tão delicados trabalhando em mim novamente. 
Suas feições se contorceram em uma carranca, mas os olhos brilhavam com diversão mordaz e ela me jogou contra a cama, com cuidado para que minhas lesões mais sensíveis atingissem as almofadas com suavidade.
— Morda essa língua antes que eu abra esses cortes outra vez.

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O medicamento não despertava mais a dor aguda que escalava até meus ossos ainda ontem, sinal de que a cicatrização está agindo como deveria. Ao menos uma vantagem entre tantos terrores de uma vida transcendente.  Se Melyssa percebeu a cura acelerada não comentou, e continuou a embeber os panos com o líquido de coloração amarelada e aplica-los nas feridas quase fechadas agora.
— Você poderia me ensinar. — Declarei quando ela utilizava a última das bandagens para selar a medicação em minha pele.
Melyssa se acomodou ao meu lado conforme eu também me levantava para uma posição sentada.
— Ensinar o que sabe sobre tratamentos médicos— Esclareci— Seria útil.
— Espero que não. — Seus olhos encontraram os meus, advertência lampejando ali— Mas sim. Eu poderia ensiná-lo.
Abri a boca para um agradecimento rápido quando um fraco tilintar ecoou escada acima, até o quarto onde nos encontrávamos.
—A pizza. —Melyssa disse somente, conforme se levantava e, abrindo uma das gavetas, estendia-me uma camiseta limpa e prosseguia para fora do quarto, até a porta da frente.

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