capítulo 2

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Mas eu tinha ciência de que esse não era o Teddy que Caio conhecia, e ficou claro quando ele piscou vacilando um passo para trás, o peito se elevando em um arquejo, não ousei avançar ou mover sequer um dedo oferecendo o espaço de que ele precisava para absorver a loucura que acabo de lhe lançar. O som das vozes distraídas e do farfalhar das folhagens sobre os pinheiros invadiam a tenda preenchendo desconfortavelmente o absoluto silêncio que se fazia ali.
Caio abriu a boca algumas vezes certamente tentando unir as palavras em uma pergunta, então poupei seu esforço.
_ Não sei como aconteceu, acordei esta manhã no topo da colina próxima ao acampamento sem qualquer lembrança, apenas dois timbres ressoando em minha mente, um deles era o seu, e me trouxe até aqui, mas a primeira ainda é um mistério.
_ Quer que eu acredite nisso? Desculpe, é loucura, como sabe sobre o Teddy?_ Ele finalmente falou outra vez, com as palavras entrecortadas em um tom estridente moldando a frase de forma mais engraçada do que deveria, mas concentrei-me nas memórias devolvidas a mim, agarrando qualquer lembrança que pudesse convencê-lo sobre quem eu era.
_ No seu aniversário de um ano seu pai lhe presenteou com um ursinho de pelúcia e você adorou, ainda posso ver o sorrisinho banguela iluminado apenas pelo brilho incandescente dos pequenos olhos avelã, ele era piloto e na semana seguinte partiu a trabalho, mas três dias depois sua mãe recebeu o recado de que o avião havia caído e não houvera qualquer sobrevivente, o ursinho foi o último presente que recebeu de seu pai, e você o nomeou como Teddy. Com três anos se mudou para Flowquins e começou a escola, mas dois anos depois se mudaram de casa ainda na mesma cidade, quando tinha seis recebeu sua primeira bicicleta e atropelou um esquilo em sua primeira tentativa de pedalar na rua íngreme onde sua avó morava, você chorou por dias depois do enterro improvisado que deu ao animal, e desde então Cyntia, sua mãe lhe apelidou assim. Aos sete participou do campeonato de futebol em sua escola e fez o gol da vitória nos últimos segundos de jogo, depois disso foi convidado a participar de todas as competições que aconteceram nos anos seguintes. Seu primeiro ano neste mesmo acampamento aconteceu quando tinha nove e, nas duas primeiras noites ficou tão apavorado que quase pediu ao instrutor que ligasse para sua casa durante a madrugada, mas permaneceu firme aguentando os horrores da vida na floresta e pediu para voltar no ano seguinte até que fosse tão natural para você quanto sua própria cama, mas anos mais tarde quando tinha doze me perdeu nessa mesma floresta_ Esperei um segundo para recuperar o fôlego tanto pelas palavras disparadas quanto pelas lembranças não pronunciadas que ameaçavam me partir ao meio e carregar minha consciência até o passado que se aproximava tão sorrateiramente rasgando a muralha levantada anos antes e empurrada ao fundo de minha mente permanecendo sombria e escondida de forma minuciosa e furtiva até que os rugidos e golpes tornarem-se apenas roucos raspares de unha envolvidos em pedra. _ Você me conhece, Caio, pois esteve comigo em cada segundo de sua vida, precisa acreditar em mim por mais insano que isso pareça.
_ Como?_ A única expressão sussurrada que conseguiu escapar de seus lábios agora contraídos, e eu possuía uma breve noção do que poderia ter acontecido mas mesmo que quisesse não haveria uma maneira tangível de explicar a ele o significado por trás dos últimos catorze anos, então escolhi dizer:
_ Eu me lembro de tudo, cada fração de segundo desde o início da minha existência, elas voltaram a mim assim que percebi quem você era, mas nada diz respeito a como isso seria possível. _ A frase não era uma verdade completa, mas também não se tratava de uma mentira descarada, assim encarei-o nos olhos mantendo a voz firme e determinada.
_ Eu... _ Caio foi interrompido por uma voz feminina e doce da qual eu me lembrava:
_ Caio, vamos nos atrasar. Não me diga que vai pra cama também, assim como Jace.
_ Vai_ Toquei o ombro de meu amigo e, por um momento pareceu uma má ideia, mas então ele virou o rosto e pude ver o afinco agarrado àqueles olhos e, nesse instante tive a certeza de que ele aguentaria qualquer confusão a que eu o arrastasse e lutaria apenas com as unhas e os dentes se assim necessário, não porque acabo de resumir sua vida ou contar-lhe um absurdo. Não, Caio ainda precisa de tempo para absorver os últimos minutos, mas porque foi abençoado com ascendência e propósito e jamais abandonará uma causa, mesmo perdida. O brilho refletiu em meus olhos e seus lábios repuxaram levemente para cima antes de responder a garota e sair da barraca.

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