Quatro.

6 6 0
                                    


C

oloquei minhas músicas de violino para tocar. No volume máximo, de propósito. Agnes berrava do outro lado da porta, mas eu estava trancado, não sou tão louco. A não ser que as pelancas ambulantes fossem capazes de quebrar a barreira de madeira que nos separava.

E Emilie Lutifier voltou a cantar e tocar com o arco sobre as cordas, como se lançasse magia com uma varinha.

Mesmo nesses tempos

Lamentos cantados passam

Despercebidos (Despercebidos)

Desperdiçados (Desperdiçados)

Incondicionais ao seu ver

Interpretados pelo saber

E eu canto e você escuta

Mas não são todos como você

Azul, azul, pedra, pedra

Cobra, Cobalina. Acobalá

Melá, anela, além-méla-mela e a melar

Azul cobalto como a pedra

A pedra serena

A pedra pequena

Como o cobalto

Aquele cobalto

Que vive no mar

Crítica, objetiva, despercebida, jamais desperdiçada. O que eu ouvia de Emilie era algo que já foi feito antes, na ditadura passada, onde os artistas cantavam versos despercebidos e escondidos sobre o que estava acontecendo. A denúncia escancarada apenas para quem a entendia. E quem a entendia, feliz ficava. Esperança escondida e soprada.

— Bosta de música! — Agnes gritou do lado de fora.

Mas eu não fiquei com raiva, eu comecei a rir. Ri muito. E o pensamento voltou à minha cabeça. Quem entendia, feliz ficava.

Então o sorriso se desmanchou quando outro pensamento voltou à minha mente.

Que tudo seja melhor com o saber que passeia. Aquilo ecoou pelo meu cérebro como um alto som derruba a neve em uma avalanche. Que ódio. Pensei. Ótimo dia.

Eu precisava conversar com Perla sobre isso, e com Eliot também. Pode ser um surto, mas quero que eles saibam disso de alguma forma. É bom, faz bem. É um peso a menos nas minhas costas, é outro a mais sobre a deles. Será?

Felizmente eles já estavam juntos quando os encontrei e isso me fez tremer. Talvez eu já tenha ficado com os dois. Não juntos! Pelo amor de Deus, Zeus, Buda, ou no que quer que você acredite. Eles eram duas pessoas legais, e não foi nada demais. Só nos conhecemos de outras formas e...

— Senta aqui, Luther — Perla me chamou, estranhamente animada. — Estávamos falando sobre você, mesmo.

— Sobre o que? — só faltava eles descobrirem que ambos já ficaram comigo. E quando eu falo ambos, eu falo na vida real, não no sonho. Eu nem sei mais como explicar isso.

— Sobre a praia — Eliot disse, sorrindo para mim. Já fazia um tempo que a gente não se falava.

— Como vocês já sabem?

— Nos contaram e nos convidaram. Porque eles queriam e sabiam que você nos convidaria, certo? — Perla anunciou.

É claro que eu os convidaria..., mas não os dois juntos. O que vai acontecer se eles souberem? Não tem nada demais, já não existe mais nada. Foi só um momento e isso deve ser escondido. Os eruditos odeiam isso a todo custo.

— Ótimo, porque eu vinha convidá-los mesmo.

E eles sorriram, então me sentei e me preparei para falar sobre o sonho.

— Eu sonhei e foi muito real. Muito. E quero que vocês saibam, talvez pensem comigo.

Só agora percebi que aquilo não daria certo. O sonho só faria sentido se eu relacionasse as duas realidades. A de verdade e a de mentira. E para Eliot entender o que estava acontecendo, ele precisava saber que anteontem eu e a Perla dormimos juntos, e para a Perla entender, eu teria que contar que eu e o Eliot já dormimos juntos. Eu queria gritar e fingir. Mas como eu disse... não tem problema, certo?

— Antes eu vou ter que contar algo que talvez vocês não saibam... — eu estava tremendo. A Perla sabia que eu gosto tanto de homens quanto de mulheres, e o Eliot também. O problema é que eles dois são melhores amigos! Isso não seria ridículo? Ficar com os dois? Não foi proposital. Eu juro que não foi. — Perla... Eu já fiquei com o Eliot algumas vezes, e Eliot, bem, eu já fiquei com a Perla algumas vezes mais.

E eles se olharam e fizeram expressões diferentes. Perla levou a mão a boca, Eliot ergueu as sobrancelhas. E depois eles riram. Riram da minha cara, então o meu olhar intimidador que Perla me nomeou uma vez havia sumido, eu só conseguia olhar para os meus pés. Eu não sei porque eu tinha tanta vergonha. Só era estranho.

— Somos melhores amigos, acha que a gente já não teria contado sobre isso? — Perla riu e enrolou seu dedo indicador sobre alguns de seus cachos avermelhados.

Eliot era o que tinha mais massa de todos nós. Uma vez ele tinha feito academia, mas abandonou, e agora podia se ver algumas gordurinhas na cintura dele. Eu as vi bem de perto algumas vezes. E isso fazia ele parecer mais natural, mais humano e mais próximo da minha realidade. E ele estava feliz com isso, e não se importava. Sua pele era alguns tons mais clara e seu cabelo preto liso tinha as pontas meio azuladas. O governo estava certo mesmo sobre desconfiar de quem pinta o cabelo. Brincadeira. Risos. Mas não é de toda mentira. Ele vestia uma jaqueta jeans e embaixo tinha uma camisa branca. E seu rosto era meio quadrado nos lados e os olhos eram meio claros. Ele tinha tudo para ser um padrão odiado.

— Isso me deixa com vergonha — eu comentei e quis esconder minha cara.

— Não há nada de errado. Somos ótimas pessoas, sorte a sua — Eliot disse. — Não pense que você foi a única pessoa que ficou com a gente na vida. E não será a última.

— Que assim seja — Perla comentou e voltou a se tranquilizar depois dos risos. — Agora diga sobre o sonho.

Pouco a pouco fui aceitando o que estava acontecendo e comecei a contar o tal do sonho. Antes eu expliquei o que tinha acontecido na vida real sobre mim com Perla. Eliot já sabia, óbvio. Então falei do convite para a praia e como eu fui dormir. Depois eu contei que tudo estava trocado, até falei sobre o violão e sobre o mélA.

m-é-l-A? Parece meia, ou mela. Melar — Perla se confundiu enquanto soletrou.

Eu me lembrei da música de Emilie Lutifier, teria sido uma referência que meu próprio cérebro tinha colocado? Afinal, sonhos são a fanfic de coisas que você já viu, ouviu ou fez.

— Isso é "Além" ao contrário — Eliot conclui. E aquilo foi a coisa mais óbvia do mundo.

— Então o Luther estava no Além?

— Pode ser que sim. Pode ter sido uma ideia de morte, alguma outra realidade. Sei lá, uma visão do futuro? Um pressentimento?

— Não parecia nada disso. Aliás, parece esse negócio de realidade. Mas eu não quero acreditar nisso, mesmo que tudo fizesse bastante sentido.

E Eliot coçou a cabeça e pensou.

— Uma pena a Márcia Sensitiva não estar mais viva pra poder tirar uma análise disso aí — comentou, e me perguntei quem era essa mulher. Talvez fosse só uma brincadeira que ele referenciava os conhecimentos de seu passado.

— É só um sonho. Sonhos são estranhos. Tenho alguns que se eu contasse a vocês, talvez vocês nunca mais me veriam como antes. Sério — Perla cruzou as pernas enquanto se apoiava na mesinha.

Eu olhei ao redor, observando o pátio vazio.

— Talvez seja um sonho só por agora.

— Se algo acontecer, conte-nos — Eliot acabou com o debate, por enquanto. Então fomos comer e depois passamos o resto do dia estudando e partindo para nossas casas. Finalmente chegou o fim da sexta-feira.

LUTHER | Temporada 1Onde histórias criam vida. Descubra agora