A cara dele era a melhor parte.
— Não sou eu. Não mesmo — ele ainda estava chocado. — Mas é a minha voz, eu sei. Tem certeza que vocês não estão me enganando, né?
— Por que eu faria você cantar pra inventar que o seu "eu de outra realidade" veio me chamar no meio da noite? Eu não sou tão criativo assim, e não faz sentido! Quer dizer, agora faz — tentei explicar.
Eliot olhou para Perla com o rosto perplexo, completamente desnorteado, confuso, sem crença. O que acontecia ali era algo sério, fora do comum. Poderia ser algo proibido, ou coisa nunca vista antes. Nós estávamos lidando com uma situação além do que já imaginamos, e o pior, era real. Aquele sentimento de "o que vem depois?" pulsava em todos nós, quase uma tortura coletiva. Porque a pior parte era não ter qualquer noção do futuro, e que agora até a morte estava invalidada. Ela não era mais o limite. Eu sentia isso desde o início, dos sonhos, das visões. E eu ainda precisava ter que lidar com aquilo sozinho. Mas eu estaria mesmo?
— Eu canto tão bem assim? Não imagino que minhas cordas vocais sejam capazes.
— Talvez você não tenha testado seus limites ainda.
— Não temos tempo para isso — continuei, me sentando sobre minha cama e analisando a situação.
— Temos que focar no que realmente é importante agora, certo? Tem avaliação hoje, já que foi adiada devido a visita de ontem. E tem isso também! São as últimas coisas do ano. Preciso focar nisso, vocês entendem? Preciso que compreendam que isso é o mais importante agora. Depois teremos tempo suficiente para lidar com essas coisas — Eliot dizia, a voz estava afetada, baixa, buscando orientação.
E Perla pareceu achar aquilo ridículo.
— Isso pode ser a coisa mais fútil do mundo. Se toda essa história sobre outras dimensões for real, se conseguirmos chegar a esse ponto, Elio... do que valeria essas coisinhas? Estamos lidando com o pós-vida, o pós-morte, o tudo!
— Se for — ele repetiu —, mas ainda não sabemos de nada, e precisamos de tempo, coisa que não temos. Possa ser que estamos nos metendo em grande perca de tempo. Não quero quebrar a cara, vamos diminuir esse impacto. O que custa esperar? Não parece ser tão urgente.
Pareceu ser a coisa mais sensata a se fazer. Eu já estava cansado daquilo tudo, os outros talvez mais. Eles não tinham noção de como as coisas para mim eram piores, mas não quis preocupá-los. Já basta eu ter contado isso tudo, um peso a mais para eles, como eu disse há muito tempo.
Eles se foram, eu me fui mais tarde. Ouvindo música na van, pensei. Pensei em você.
Do que vale a vida se não para viver e contar histórias? Sobreviver é algo simplório. Viver é o auge. Sobrevivemos para ter, pelo menos, um gosto de vida, um gosto de existir. E nós, humanos, podemos contar e guardar histórias. Então eu te conto essa história, mesmo que eu não te conheça. Mas eu sei que alguém vai ver isso tudo que eu vi, viver do que vivi. Eu barro tudo em minha mente, gravo com meus olhos como se eu estivesse gravando um filme a todo instante. Eu sou o personagem principal da minha história, é assim que deveria ser com todo mundo. E eu a narro, mesmo que eu não saiba seu final. Algumas coisas eu mundo para seguirem conforme o planejado, mas sempre pode existir um porém, uma barreira para um clímax e para o fim de um arco. Qual é o maior objetivo da sua vida? Aquele supremo, quase único. Ele existe? Ele é tão importante assim? Pensei no meu, ele parece muito distante, mas pareceu perder a relevância. É tão terrível quando coisas assim acontecem. Quando as coisas que amamos tanto perdem a graça. A vida deve ter graça, é o que vale a pena, é o que faz o espectador da sua narrativa querer lhe acompanhar, é o que faz com que nós mesmos continuemos a querer viver.
Por isso eu tento fazer coisas diferentes, como episódios especiais de meio de temporada, os quais façam com que meus visualizadores, como você, continuem me vendo. Continuem se surpreendendo e me entendendo. Criando empatia, mesmo que no final, talvez, não seja dessa maneira no pós-morte. Quem é você para mim? Quem é você para outro alguém?
E um dos pensamentos colaterais que saem dessa minha "autofilosofia" é, de fato, aquele que todos nós sempre temos: pare de pensar nisso. Isso é confuso, é idiota, é inútil. Ninguém sabe, ninguém quer saber. Você está "brisado". Você é louco, perdeu o juízo. Existem coisas mais importantes na vida. É melhor não refletir demais. Deixemos que tudo aconteça em seu tempo.
É quase automático pensar assim, eu já estou refletindo sobre isso. É melhor eu parar. Nossos cérebros podem ser incapazes de refletir muito. [Alerta de crise existencial]. Às vezes eu me sinto louco, por que isso é tão deprimente?
A avaliação foi feita, o tema era fácil, fiz trabalhos sobre isso. De fato, eu vivia uma crise. Será que eu estou com depressão? Parece um crime falar disso também. Eu não sei.
Essa é a resposta. Eu não sei de nada.
— Nos vemos amanhã. Esteja bonito — Perla pegou em meu ombro, se despedindo.
Eu pisquei os olhos e eu já estava em casa, exausto de existir, de ter tantas dúvidas. De parecer clichê, de parecer diferente de tudo. De fingir que tá tudo bem, de fingir que estou no pior momento da minha vida. Pai, mãe. Queria ter coragem de ligar para vocês de novo. Vocês atenderiam? Eles sabem da minha farra. De quem eu gosto de ficar. Do que eu faço, de que sou adulto e gosto de pessoas. Pessoas dos quais eles dizem que eu não deveria gostar, como homens.
O que está acontecendo comigo?
Eu dormi depois de comer um pouco, quase me esquecendo de escovar os dentes, mas tomei um banho antes, um banho longo. Então enchi a banheira velha que ainda existia no banheiro e fiquei lá por meia hora. Avisei para minha vó que ficaria durante todo esse tempo, que eu estava meio mal e precisava de um pouco de paz. E água pareceu me acolher muito bem. Eu comecei a me sentir limpo, abençoado, algo assim. Energia positiva estava correndo pelas minhas veias mais uma vez. Calma. O que eu quero fazer depois? É tão difícil escolher o que fazer quando se vive em uma ditadura! Sim, com todas as letras expostas. D-I-T-A-D-U-R-A.
É mais que um saco, pessoas morreram, estão sendo mortas. Ocultas. E eu estou reclamando da minha vida. Mas eu estou lidando com realidades. Isso também é algo grave de se considerar, não é? Tudo tem seu grau de gravidade que se diferencia em cada pessoa.
Os versos do dia que Eliot acordou ao meu lado voltaram a brilhar na minha mente, enquanto a espuma da banheira começava a sumir.
Just like magic (yeah)
I'm attractive (oh, yeah)
I get everything I want 'cause I attract it (oh)
— Obrigado, Adriana. Eu preciso ir.
A música ficou ecoando pelas minha cabeça enquanto continua acordado. Tentei dormir.
I get everything I want 'cause I attract it (oh)
Não saía da minha cabeça. Ela me lembrava do Eliot a todo instante. Eu estaria apaixonado? Se apaixonar parece clichê. Tudo parecia, principalmente eu. Me olhei no espelho, olhei de verdade. Olhei como eu olho para os outros. Eu os vejo assim mesmo? Me intimidei comigo mesmo. Minha autoestima pareceu aumentar, eu ri. Era como se eu quisesse ser galã com todo mundo o tempo inteiro, mas no final eu só ficava com cara de quem queria matar todo mundo. Isso era preocupante, além de que também explicava porque meu cenho doía tanto às vezes. Preciso começar a relaxar o rosto, ou tentar fazer um treinamento. Urgentemente.
Enfim, eu dormi, a magia se dissipou. Deixei de atraí-la e a repeli. Não para longe e para sempre, mas só por enquanto. Para poder dormir.
Não sonhei, mas senti algo. Senti que eu tinha que fazer alguma coisa. Algo aconteceria hoje — porque já era de madrugada — na reunião com os entrevistadores que queriam saber sobre nossa sala e as nossas coisas sobre biologia e botânica. E o pior, comigo. Porque eu sou um dos três entrevistados, os escolhidos para algo especial.
Eu não poderia estar mais ansioso.

VOCÊ ESTÁ LENDO
LUTHER | Temporada 1
Mystery / ThrillerLuther tem vinte e três anos, mora com a avó - a qual ele odeia, ela também sente o mesmo. Eles estão em 2039, as eleições falsas de presidente da república estão prestes a acontecer - um ano atrasada devido alguns empecilhos. Empecilhos os quais vo...