West Yellowstone, condado de Gallatin, Montana, 1996
Era possível ouvir o tilintar de copos do lado de fora do recinto. O homem, que trajava roupas pretas bem fechadas e um chapéu campaign da mesma cor, observava a entrada do bar, com as costas escoradas no poste em frente à construção. Por dias ele estivera ali, observando quem entrava e saía, seus horários e a forma com que se portavam. Apesar de já ter alvos certos, ele achava proveitoso saber os calços onde pisava.Naquela noite, tal homem decidiu entrar. Despiu-se de qualquer medo que poderia haver ainda em seu ser e ultrapassou a porta de madeira envelhecida. Uma vez lá dentro, era possível sentir o cheiro de álcool e fumo, além dos perfumes baratos que a maioria dos homens e mulheres usavam naquela taverna. Seus olhos deram uma volta completa em todo o ambiente antes de decidir se aproximar do balcão, um dos lugares mais calmos, e então sentar-se em uma banqueta alta. Seus dedos batiam na madeira enquanto apenas olhava para o homem e a mulher, sentados a menos de um metro dele. Seus olhos estavam fixos nas duas pessoas que falavam baixo entre si e bebericavam os líquidos amarelados de seus copos.
Uma voz grave, afetada pelo tabaco e pelo tempo, interrompeu seus pensamentos:
— O que vai querer?
— Oh! Não, eu não quero nada — respondeu, enquanto fitava mais uma vez o homem e a mulher.
— O consumo é obrigatório. Ou pede, ou vai embora. — O senhor barrigudo que secava alguns copos de vidro foi sucinto em suas palavras.
— É... — O homem de preto olhou para as prateleiras como se examinasse cada uma delas, de longe. Seu rosto bronzeado, com traços bem marcados e uma barba bem feita, se contraía na medida que semicerrava os olhos. — Aquele lá — apontou para a terceira, de cima para baixo —, é vinho?
— Uhum — assentiu o dono do bar, antes de tossir, expelindo gotículas de saliva pelo balcão.
— Quero um copo cheio, por favor — respondeu.
O dono do bar o encarou com estranhamento, mas fez o que lhe era pedido. Despejou o líquido escuro no copo americano e o empurrou para a frente do homem de preto, deslizando o recipiente no balcão de madeira.
Alguns cupins caíam do tampo e cobriam as calças escuras dele, mas não se importava. Os expulsava de lá com as mãos e então voltava a encarar o casal.
Quando já estava na metade do copo, ele se levantou, deu três passos à frente e tossiu com a mão sobre a boca.
— Pois não — disse a mulher.
Seus cabelos longos deram lugar a uma face doce e bonita, quando se virou.
— Desculpe a indiscrição — começou. — Você é Araceli? — o homem perguntou.
— A própria — respondeu sem cerimônias, mas um tanto curiosa.
— E este deve ser Guilherme. — Apontou para o homem ao lado da moça, que até então não havia se intrometido na conversa.
Araceli assentiu e olhou para o rapaz que a acompanhava, como se o obrigasse a ser gentil, todavia ele não fez nada mais que mover a cabeça, de leve.
— Fiquei sabendo que vocês trabalham... Como posso dizer? Com coisas que não estão ao alcance de qualquer um. — O homem de preto bebeu um gole do vinho que ainda restava no copo.
— Olha aqui, a gente não está mais fazendo esse tipo de coisa — Guilherme se pronunciou pela primeira vez.
— Não precisa se alterar. Eu apenas queria saber se vocês ainda podem fazer algo por mim. Pelo que sei, vocês são bons no que fazem. Tomei conhecimento do caso da Colômbia e também do México.
— Éramos. — Araceli foi dura. — E também, não acho que um padre pode querer nossos serviços para alguma coisa. — Ela virou o resto de bebida e contraiu a face com o ardor do líquido.
— Padre? — O homem de preto riu de maneira discreta.
— Quer começar pela aliança na mão esquerda, que claramente não é de casamento, ou pelo copo de vinho que escolheu no meio desse montante de bebida boa? — Araceli pontuou de maneira natural.
— Você é muito esperta, minha jovem. Mas o terço que carrega no pescoço também me diz muita coisa — falou ele a ela que, por instinto, levou a mão ao objeto. — Assim como o crucifixo do rapaz aí. — Apontou para Guilherme. — Eu sou Rudolph — disse, puxou a banqueta mais para perto dos dois e sussurrou: — Já ouviram falar da Ilha de Mörker?
Guilherme deu uma risada contida e sacudiu a cabeça.
— Qual é a graça, meu jovem?
— Nenhuma. Só acho meio cedo para começar a divagar sobre coisas que não existem — ele respondeu.
— E baseado em quê você diz que ela não existe?
— Alguém já foi até lá? — O padre se calou diante da pergunta e Guilherme prosseguiu: — Existe alguma fotografia, pintura, não sei... alguma testemunha viva de que esse lugar existe?
— Olha, rapaz. As coisas nem sempre são fáceis. Nem tudo que existe é palpável.
— Creio nisso também. Mas com relação a esse lugar, eu não tenho nenhum motivo para acreditar que ele existe verdadeiramente. — Guilherme sacou uma nota da carteira, abandonou-a sobre o balcão e voltou a guardá-la no bolso. — Vem Celi. Vamos embora. — Ele se levantou e pôs-se a andar na direção da saída.
— Ei! — Rudolph segurou no braço de Araceli, antes que ela pudesse sair de sua presença.
A moça sentiu uma onda fria invadir o seu corpo, primeiro abaixo da nuca, depois espalhou-se por toda a extensão da pele, até a ponta dos dedos das mãos e o topo da cabeça. Ela engoliu em seco e o encarou, fazendo força para soltar-se dele.
— Eu tenho um recado... — ele sussurrou, com a cabeça levemente voltada para baixo e os olhos escuros estagnados. — Ele não culpa vocês. E ele sabe sobre os seus sentimentos por Guilherme — murmurou.
— Me solte! — ela ordenou.
— Se mudarem de ideia — Rudolph enfiou a mão no bolso do casaco e retirou um papel dobrado —, podem me encontrar lá. — Pôs o papel dentro da abertura da jaqueta da moça.
Araceli puxou o próprio corpo para o lado contrário, fazendo com que a mão dele deslizasse sobre sua roupa e depois parasse no ar. Ela ajeitou a vestimenta e cruzou os braços, depois pisou firme na direção da saída, acompanhando Guilherme.
— O que foi? — o rapaz perguntou ao perceber que a mulher encarava a folha cortada em um pequeno pedaço disforme. — O que é isso.
— Veja você mesmo.
Ela virou o bilhete a ele.
— Mas é a...
— É. O endereço da nossa antiga paróquia.
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Lúrido Veneno - A ilha profana
HorrorUma ilha perdida, esquecida, uma verdadeira lenda. Não para os seus poucos habitantes. Em meio a acontecimentos completamente inexplicáveis, surge uma profecia antiga. Segundo ela, a filha do mal não tardará a chegar, e todos padecerão sob os seus p...