— Eu acredito que todos nós temos uma parte misericordiosa em nossos corações. Uma parte que se compadece dos irmãos. Uma parte que se solidariza com a dor do outro. Mas em certos momentos, meus queridos, o nosso ego e o nosso orgulho encobrem essa chama de bondade, acesa e vívida, e a transformam em cinzas...
— Eu ainda não sei o que viemos fazer aqui — disse Guilherme a Araceli, estavam sentados no último banco, atrás de duas senhoras.
— Somos convidados — ela sussurrou de volta, ainda olhando para o padre, que encontrava-se muito diferente da forma com que se apresentara a eles no bar.
— Acho que já se esqueceu de como nos escorraçaram daqui da última vez — replicou o rapaz.
— Não devemos viver de passado, Guilherme. — Araceli volveu o olhar a ele. — Agora, por favor, preste atenção na homilia.
Os olhos dela permaneceram na mesma direção durante todo o restante da missa. O rapaz ao seu lado, no entanto, movia a cabeça para um lado e para o outro, como se estivesse incomodado. Fora um sacrifício convencê-lo a ir até lá. Araceli teve de usar todo o seu poder de persuasão.
Assim que o padre os agraciou com a benção final, seguida de todos os “aleluias” e “améns”, os fiéis caminharam em fila em direção à saída, menos o casal, que permaneceu sentado.
Rudolph percebera a presença deles desde que colocaram os pés na igreja. Seus olhos observaram ao longe a moça dar passos curtos da porta até o suporte de madeira, que suspendia um recipiente transparente. Ela dobrou o joelho direito, molhou a ponta do polegar na mínima gota que descia vagarosa e, com ela, desenhou uma pequena cruz na testa. Aquele gesto dizia tanto ao padre, que ele não conteve um sorriso enquanto pronunciava o ato penitencial.
Guilherme, por outro lado, fez apenas o sinal da cruz e buscou um lugar afastado para se acomodar. Naquele momento, Rudolph entendeu que precisaria de muito mais que uma conversa para derrubar as barreiras do rapaz.Assim que o local encontrou-se vazio, Rudolph acenou para os dois e moveu as mãos para frente e para trás, pedindo que esperassem. Em seguida, foi até a Sacristia, retirou a batina e retornou, com uma carta em mãos.
— Obrigado por esperarem — disse ele, enquanto se sentava ao lado de Araceli.
— O que o senhor quer?
— Guilherme, mais respeito. Estamos na casa de Deus — a moça o repreendeu.
— Não, Araceli. O rapaz tem razão. Além do mais, é a serviço de Deus que eu os chamei.
Rudolph remexeu-se em seu lugar e limpou a garganta, queria começar a falar, mas lhe faltava uma forma convincente o bastante de expressar os fatos. Ele espremeu os pés dentro dos sapatos marrons e deslizou os dedos sobre o papel amarelado que carregava. Suas pupilas escuras deram uma volta completa por toda a arquitetura da basílica e ele suspirou, sentindo uma gota fria e inquieta escorrer pela nuca e desabar nas costas, perdendo-se ao encontrar-se com o tecido preto, grudado na pele bem acima do fim da coluna.
— Eu chamei vocês aqui porque me disseram que eram os únicos que acreditariam verdadeiramente no que eu tenho a dizer. Já viram muitas coisas, passaram por algumas experiências.
— E quem foi que disse isso?
— Ele agora está impossibilitado de...
— Quem foi? — Guilherme insistiu.
— O padre Klaus.
— Não temos o que fazer aqui, Araceli. — O rapaz levantou-se e girou o pé direito para o lado contrário, já pronto para abandonar o lugar.
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Lúrido Veneno - A ilha profana
HorrorUma ilha perdida, esquecida, uma verdadeira lenda. Não para os seus poucos habitantes. Em meio a acontecimentos completamente inexplicáveis, surge uma profecia antiga. Segundo ela, a filha do mal não tardará a chegar, e todos padecerão sob os seus p...