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Aleyna tinha um sexto sentido que jamais a deixara na mão. Sempre que algum doente estava prestes a partir, ela sabia. Sentia também quando precisavam de sua ajuda, parecia sempre estar no lugar certo e na hora certa. Infelizmente, a sensação que tinha naquele momento não era nada boa. Conseguia enxergar perfeitamente a imagem em sua cabeça: uma onda avermelhada, como se algum animal ensanguentado houvesse sido jogado nela. A crista da onda embatia nas pedras, e, em espumas, o mar voltava ao seu lugar, deixando um amontoado indecifrável de algas e vísceras sobre o litoral à beira do precipício. Via nitidamente, poderia pintá-la em um quadro se tivesse dom para tal façanha. Conseguia sentir até mesmo o cheiro podre que exalava e um gosto amargo invadia sua boca, como se aquela mistura amarescente escorregasse pela sua garganta.

— Aleyna... Aleyna!

— O que foi , Kiara — respondeu, ainda com um pouco de confusão na voz, e voltou a encarar a garota ao seu lado. — O que foi? — Esfregou a mão esquerda no pescoço, apertando-o para fazer com que o amaríneo se dissipasse.

— Perguntei se já está bom — a jovem repetiu o que já havia dito três vezes antes de reforçar o nome da aspirante à curandeira.

Aleyna pôs a face sobre o grande caldeirão. A fumaça que subia pelos ares era tão densa que lembrava uma nuvem carregada. A moça fechou os olhos e inspirou, seu nariz fino e delicado deu uma volta em meio ao vapor e ela balançou a cabeça em afirmação:

— Está bom. Vou ajudar você a puxar o caldeirão para o chão, venha. — Aleyna pegou o pedaço de pano que carregava no ombro direito e pôs em um dos lados do recipiente. Kiara fez o mesmo. — No três. Um, dois, três! — As duas seguraram firme o caldeirão e o soltaram no solo, perto da mesa, o mais rápido possível.

— Estou repensando esse desejo de querer te ajudar. — A mais nova passou a mão sobre a testa e expirou com força, soltando todo o ar pela boca.

— Saber ler traz deveres. E por mais que eles sejam cansativos, eu gosto — respondeu Aleyna, enquanto caminhava de volta até a panela menor de barro, onde fazia um chá de camomila para servir ao pai quando ele chegasse.

Kiara sentou-se no banco comprido perto da saída e jogou a cabeça para trás, com um sorriso sugestivo.

— Aconteceu alguma coisa, Kiara?

— Nada, eu estava aqui pensando. Você poderia me ensinar — disse a mocinha, com os olhos estreitos aflitos por uma resposta.

— Preciso da permissão de meu pai para tal coisa. Até lá, eu não posso fazer isso — redarguiu a outra, ao tempo em que segurava a panela pelos lados e a deixava sobre a mesa, com pressa.

— Eu ia pedir a outras pessoas... Mas já que você sabe.

— Pedir a quem? — Aleyna franziu a testa.

— Sabe o que dizem sobre as mulheres perdidas, filhas de Malthus — sussurrou as últimas palavras.

Aleyna cruzou os braços e sacudiu a cabeça para os lados, não conseguira disfarçar o desapontamento e também a raiva que sentira ao ouvi-la proferir aquelas palavras.

— Não diga esse nome aqui — ela repreendeu entre os dentes. — Eu acho que ainda não lhe explicaram o que essas pessoas fazem e o motivo de elas saberem ler — exprimiu com desagrado.

— Ninguém ao menos sabe quem elas são e qual o motivo de deixarem aquelas coisas na floresta. — Kiara levantou-se, foi até a mesa e escorou os cotovelos nela, deixando o tronco completamente tombado.

— Sabe a quem elas servem?

— A um espírito.

— Malthus não é um espírito, Kiara — retorquiu a moça pálida.

Lúrido Veneno - A ilha profanaOnde histórias criam vida. Descubra agora