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O coração do sacerdote permanecia apertado, desperdiçara a única chance de conseguir a ajuda valiosa de Araceli e Guilherme, e, naquele momento, de joelhos em frente ao Santíssimo, Rudolph clamava por auxílio. Sentia dor e formigamento em seus membros inferiores, estava há horas naquela mesma posição. Os seus sentidos apurados permitiram-no notar uma presença se aproximar. O cheiro da vela acesa que a pessoa carregava foi o que despertou os seus sensores naturais. Em seguida, os passos vagarosos dados com cuidado até o seu lado, e, por fim, a voz trêmula pronunciou:

— A sua bênção, padre.

— Deus o abençoe — respondeu o sacerdote, ainda de olhos fechados. — Veio se confessar?

— Não, eu... — O homem parecia pensar. — Eu vim porque tenho visto algumas coisas, padre.

— Na igreja, meu filho? — questionou o padre.

Era comum que o procurassem para denunciar corrupções e heresias por parte dos membros do conselho e de alguns fiéis.

— Não, padre — o homem respondeu, virando o pescoço ao tempo em que Rudolph fazia o mesmo para olhá-lo dentro dos olhos. — Eu nunca acreditei em coisas sobrenaturais senão o amor de Deus. Mas os meus vizinhos, eles... eu não sei dizer. Mudei-me há pouco tempo, e toda vez que olho para aquela casa, uma angústia me arrebata. Eu escutei alguma coisa, era uma voz grave. Ela disse algo sobre — O homem engoliu em seco — a chegada de uma profecia.

Rudolph sentiu aquela frase empurrar o seu ar de volta ao pulmão, sufocando-o. Ele tossiu algumas vezes, obrigando o próprio corpo a concluir a oxigenação, depois pôs a mão direita sobre o ombro do homem ao seu lado.

— Venha. Vamos conversar em outro lugar.

Os dois fizeram o sinal da cruz ao mesmo tempo, com movimentos que pareciam ensaiados há dias, já que não existia nenhum tipo de atraso. Foi completamente espelhado. Assim que passaram pela porta lateral da igreja, o padre pôde contemplar melhor a face do rapaz. Era relativamente jovem, os olhos castanhos ofuscavam-se pelas inúmeras vezes em que o rapaz juntava e separava as pálpebras em menos de dez segundos. Parecia nervoso por estar naquela situação.

— Qual o seu nome, meu jovem?

— É Donovan.

— Bem, disse que se mudou há pouco tempo, não sei se me conhece. Eu sou Rudolph. — Ele estendeu a mão, que foi observada por alguns segundos antes de o gesto ser retribuído. — O que mais você viu?

— Bom, ver, eu não vi nada. Mas eu nunca senti nada parecido com isso. Não é medo, exatamente. Já passei noitadas em lugares piores que aquela casa. Festas clandestinas com os amigos em barracos caindo aos pedaços, no meio do nada. Mas aquilo lá é — Donovan olhou na direção do gramado que circundava a igreja, mas o seu pensamento estava longe dali — muito diferente.

— Acha que precisam de ajuda? — questionou o padre.

— Sim. Eu não tenho o que fazer, sou fraco demais para intervir — respondeu o rapaz.

— Pode me dar o endereço? Eu vou ver no que posso ajudá-los. Quem sabe um direcionamento espiritual, ou uma visita semanal para saber como vão as coisas.

Donovan assentiu respirou pausadamente, sugando o ar ao seu redor como alguém que acaba de voltar à superfície depois de um mergulho.

— Rua McHunter, trezentos e vinte e dois. O nome da moça é Justice, se não me falha a memória — ele disse. — Muito obrigado, padre Rudolph, eu tenho que ir.

— Posso lhe fazer uma visita no dia em que eu for vê-los? — perguntou o sacerdote.

— É claro, padre. Chame pela minha mãe, no portão. O nome dela é Jenna. — Ele sorriu. — Tenha um bom dia, padre Rudolph. Eu agradeço por tudo, de novo. — Donovan gesticulou, deu meia volta e retirou-se a passos largos.

Rudolph olhou para o céu, acompanhando algumas nuvens com as pupilas negras.

— Rua McHunter, trezentos e vinte e dois — ele repetiu para não esquecer-se e pôs as mãos na cintura.

Durante a tarde, Rudolph preparou-se para ir ao endereço que lhe fora dado. O homem sabia muito bem que precisava da autorização de seus superiores para intervir em qualquer situação sobrenatural que estivesse acometendo aquela família, entretanto, sentia que não podia deixar de comparecer à casa da mulher com aquele nome que ele considerava tão peculiar.

No dia seguinte, Rudolph acordou cedo. Sua cabeça pesada clamava por mais uma ou duas horas recostada ao travesseiro de penas de ganso, mas não havia tempo para o pecado da preguiça. Pessoas precisavam dele, e ele não iria deixar de atendê-las. Além do ensejo paquidérmico de ser útil para aquelas vidas, o sacerdote não negava para si mesmo que a curiosidade de saber do que eles falavam quando foi citada a profecia estava arrebentando um por um de seus neurônios.

O café estava quente e amargo, não quis comer. O líquido desceu pela garganta inflamando cada espaço de pele, língua, até resfriar-se naturalmente no estômago onde era sua morada final.

Rudolph trancou portas e janelas, pendurou o rosário no pescoço e colocou sua miniatura da bíblia dentro do bolso interno do casaco. Antes de sair, olhou-se no espelho e sussurrou “coragem” ao reflexo. Talvez o Rudolph que habitava o outro lado não precisasse de apoio emocional, como nas fábulas onde a imagem do refletida é o completo oposto do “eu” verdadeiro, mas o real, o inquieto e ansioso padre necessitava de apoio.

A viagem não foi muito longa, decidira ir a pé. Quatro quilômetros caminhados sem nenhum cansaço ou um pio sequer de reclamação. O cãozinho que morava no gramado da paróquia decidiu acompanhá-lo, andavam lado a lado como grandes amigos.

Rudolph já estava se habituando à situação na qual se colocara. Os seus passos sorrateiros eram convictos, e, mesmo que fazer aquilo às escondidas lhe parecesse muito errado, não conseguia negar ao instinto altruísta e aos sinais que recebera, segundo ele mesmo, de uma força superior. A fachada da casa caindo aos pedaços lhe recordava a pequena cabana do lago, que visitava quando era apenas um rapaz. Com exceção da sensação acolhedora que a recordação carregava, já que a primeira coisa que sentira ao pôr o pé sobre o ladrilho torto fora um arrepio que brotava abaixo do pescoço e se findava bem no centro do último osso da coluna vertebral.

— Venha, amiguinho. É perigoso ficar aí — disse ao cãozinho que o observava.

O animal mantinha as orelhas atentas, mas era como se não pudesse latir, apenas pequenos ruídos sem potência deixavam sua garganta. Ele movia a cabeça para os lados enquanto tentava, sem sucesso, ultrapassar a linha do portão de ferro que separava residência da rua. De modo a fazer notar que uma força o mantinha afastado.

— Calma. Não precisa ter medo. — O padre volveu o olhar à casa no exato instante em que uma das cortinas cor creme dançou para fora e revelou uma sombra infantil atrás da janela, com longos cabelos loiros e olhos castanhos, ou apenas fez parecer que o fosse, já que, como um devaneio, um milésimo de segundo depois não era mais possível enxergar nada naquele local. — Melhor que fique por aqui, mesmo  — voltou atrás.

Em meio aos gemidos do pequeno cão, Rudolph terminou o trajeto até a entrada. Primeiro entortou o pescoço para tentar vislumbrar o que se escondia para além dos vidros embaçados da porta. A única coisa notável fora um som de estilhaços de louça sendo lançados ao chão. O padre inspirou fundo, sentindo o cheiro de comida azeda que as arestas traziam, e bateu três vezes na porta.

Ritmadas e calmas vezes...

Lúrido Veneno - A ilha profanaOnde histórias criam vida. Descubra agora