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A madeira do solo afundava e subia vagarosamente à medida em que os passos eram dados de forma sistemática, sempre pisando na mesma direção. A mão direita segurava o pulso esquerdo bem abaixo da coluna. Os dedos moviam-se no ar, como se tateassem um instrumento invisível. O cabelo penteado para o lado direito lhe conferia um ar soberbo, assim como o nariz arrebitado e o casaco de veludo. Era o único em toda a ilha a portar tal vestimenta, fora um presente de seus antepassados, oferecido ao primogênito da família de geração em geração. Ele esperava ansiosamente por notícias, sabia que, mais hora menos hora, as suas presas seriam encontradas, e aguardava aquele fato como se o sentido de sua vida miserável fosse apenas aquele.

— Senhor Solveig — chamou Birgitta, a cozinheira.

Sem a reposta do Guia do vilarejo, ela abriu a porta, provocando um ruído aborrecido.

— O que quer? — ele questionou.

O homem parou de andar e pôs-se a encarar a figura amedrontada, que o observava de esguelha.

— Os rapazes voltaram. Freja tem algo para o senhor — ela respondeu com a voz entrecortada.

O sorriso sugestivo e vitorioso de Solveig era, de certa forma, assustador. Os dentes amarelados faziam uma perfeita curva oblonga, que parecia irreal para o tamanho médio de seus lábios opacos, cobertos pelo bigode grisalho.

— O que está esperando? Ordene que entrem! — O Guia agitou as mãos no ar e as bateu uma contra a outra, em seguida, expulsando a senhora.

O jovem Freja não tardou a transpassar o batente. Estava abraçado ao livro, carregando-o tal qual um pai carrega seu recém-nascido.

— Onde estão os outros? Eram mais de cinco.

— Ficaram do lado de fora. Acharam mais prudente que eu os representasse — respondeu o rapaz, sem desgrudar-se do objeto nem por um instante.

— E por que não o Kristofer? Onde ele está?

Kristofer era quem detinha a maior confiança do Guia da aldeia. Desde muito pequeno, o acompanhava nas visitas periódicas aos moradores de Mörker, o rapazote gostava de observar a postura do mais velho, até imitava a sua forma de andar, falar e limpar a sola dos sapatos. Preparava-se para ser o próximo, só havia um óbice: o coração de Kristofer não era, nem de longe, um espelho dos sentimentos de Solveig.

— Aconteceu um pequeno incidente — respondeu freja —, Kristofer machucou uma garota e precisou levá-la até Maat.

O Guia não parava de encarar o livro, era como se uma voz melodiosa e sensual o chamasse a desbravar página por página, mesmo que não soubesse o seu conteúdo.

— O que é isso?

— Kristofer encontrou. Estava no meio dos restos de um... — O jovem albino engoliu em seco e prosseguiu: — de um ritual, senhor Solveig.

— Então vocês as encontraram? — Solveig arregalou os olhos em completa satisfação.

Freja sacudiu a cabeça em negação, envergonhado. Os ombros do Guia penderam para frente, despejando toda a sua frustração na postura caída.

— Dê-me o livro. — O homem robusto estendeu o braço.

Em contrapartida ao seu movimento, o rapaz apenas olhou para baixo e estreitou o laço vivo que fizera com os braços para prender o objeto.

— Ora, mas o que significa isto? Ande! Dê-me o livro! — insistiu.

Freja parecia hipnotizado, não piscava ou movia os músculos. Permanecia empedernido com as escrituras em sua posse.

— Seu insolente. — Solveig aproximou-se dele e agarrou o livro entre os dedos roliços, arrancando-o com demasiada força do domínio do rapaz.

Freja sentiu um calor súbito descer e subir por suas veias, da ponta dos dedos ao topo da cabeça. A sensação era a de ser liberto, como se houvesse sido arrancado de brasas de tortura.

— Perdoe-me, senhor, Solveig. Eu...

— Saia daqui, imediatamente! — ordenou o Guia.

— Espere, senhor. Kristofer pediu que...

— Retire-se! — reforçou o homem, empurrando o jovem Freja na direção da porta.

Não houve tempo para os avisos, o rapaz foi expulso do cômodo, jogado para fora com toda brutalidade.
Sozinho, Solveig deslizou a mão direita sobre a pele seca que encobria as páginas e estreitou o espaço entre as pálpebras. O anseio de descobrir o que havia naquele manuscrito era tanto que o efeito físico foi reverso: não conseguia abrir o livro. Era como se o corpo quisesse degustar tudo que nele habitava, sem pressa, saboreando cada página com calma, enquanto uma xícara de chá repousasse sobre a mesa.

Cedendo aos sintomas doentios que aquele livro causara, o Guia arrancou o próprio casaco e embrulhou as escrituras detendo todos os cuidados possíveis e necessários. Em seguida, o carregou até o pequeno armário de sua sala particular e o guardou entre os dois volumes de uma das enciclopédias deixadas, também, por seus antepassados.

Solveig

O homem parou os passos curtos que dava até a saída e olhou para trás. As batidas do coração intensificaram-se. Era a voz de sua mãe. Mas como poderia ser? Há anos o seu corpo jazia a sete palmos.

Corroído pela recordação que aquela alucinação trouxera, o Guia correu para fora e lançou-se ao chão. A culpa sempre o acometia sem piedade, mas, naquela ocasião, parecia ainda mais atroz. Sentia o remorso rasgar-lhe de dentro para fora. A imagem da mãe morta, suspensa no ar com o corpo sustentado pela corda que retirou o seu último suspiro, misturava-se ao gosto amargo que se fazia cada vez mais presente em suas papilas gustativas. Solveig levou a mão direita ao pescoço e esfregou a pele, que ardia como se houvesse bebido fogo. Sentiu-se sufocado, algo espesso e frio subia pelo seu canal digestivo, inundando as vias respiratórias e encaminhando-se para o coração por suas veias grossas. Os olhos já saltavam do rosto vermelho, esticado como a pele de uma serpente, pronta para refazer-se.

O Guia dava socos na madeira, e, cada vez que levava o punho ao solo, tornava-se mais fraco. As mãos empalideceram de tal maneira que, mesmo ainda vivas, pareciam pertencer a um cadáver abandonado. Solveig ergueu os olhos para encarar uma última vez a penumbra do corredor que levava ao seu lugar favorito daquela casa.

O mal erguer-se-á. O que é profano encontrará a saída...

Apenas o pavor conseguia se destacar dentre as inúmeras sensações lúgubres presentes naquele corpo quase desfalecido.

A figura que se erguia das sombras carregava um sorriso malévolo, repleto de dentes pontudos e disformes que encaixavam-se uns nos outros, como se estivessem prontos para destrinchar suas vísceras. A cabeça era circundada por panos ensanguentados, estes, revelavam em suas arestas um amontoado de vermes que pungiam a casca ferida. A pele seca descia pela nuca e abraçava a estrutura corpórea esquelética, que caminhava a passos tortos e lentos na direção de Solveig.

— Não... Não... — murmurava o Guia, entre soluços que traziam à boca os pequenos fragmentos de tecido interno dos órgãos.

O sangue escorria pelos cantos de seus lábios. Um passo, um ruído. Era possível ouvir o som dos ossos se partindo à medida que aquela besta se aproximava, carregando um odor nauseante inigualável. Solveig sabia para onde seria levado, e aquilo tornava a dor o menor dos seus problemas. O homem deixou o peito colidir com o chão, já não conseguia mais sustentar-se de joelhos. A série de barulhos, que saíam como oxigênio pelas cavidades faciais da criatura, adentravam os tímpanos úmidos do Guia. Elas soavam como vozes desesperadas em açoite. Não pôde gritar, clamar ou pedir perdão. Sua alma fora arrebatada, e ela queimava enquanto descia para o inferno.

Lúrido Veneno - A ilha profanaOnde histórias criam vida. Descubra agora