Era hipnótico o movimento quase sensual que o líquido espesso e vermelho fazia, como uma trilha sinuosa encaminhando-se ao fundo do receptáculo de barro, alocado perfeitamente ao centro dos três corpos diminutos e inexpressivos, empedernidos, como se o susto que antecedera suas mortes fosse pior que o próprio abandono da vida. As penas brancas, agora manchadas, foram arrancadas uma a uma e lançadas à amálgama de sangue frio e ervas venenosas. Os três pares de olhos verdes estavam fixos ao centro do recipiente, ignorando os cadáveres das pombas, dispersos ao seu redor. A mais nova das mulheres, em seu íntimo, ainda carregava temor. Fora criada para não questionar, mas era impossível não indagar a si mesma se era correto tudo o que lhes fora ensinado. Se estavam escondidas, certamente não era algo que seria aceito pelos demais indivíduos que habitavam a ilha. Precisava ter certeza absoluta de que estava sendo instrumento para algo maior, e não assassinando animais indefesos sem um intento realmente válido.
— Consegue ver alguma coisa, tia Bellet? — questionou a graciosa garota, voltando as pupilas à mais velha.
A mulher fechou os olhos e inspirou, sentindo a fumaça das cinco velas invadir os seus sentidos e preencher os pulmões.
— Eu vejo...
— O que vê? — a mais nova continuou a interrogar, estava claramente ansiosa.
— Eu vejo... uma mulher — Ela contraiu a face —, um homem — Pressionou as têmporas enquanto abria lentamente os olhos —, uma criança. O pecado. Ela não tardará — completou.
A jovem moça esbugalhou os olhos e os direcionou para dentro do vasilhame, buscando enxergar o que a tia conseguia ver em meio aos restos mortais das pombas depenadas.
— Quando vamos saber sua origem? Quando vamos poder nos prostrar perante a filha da profecia? — indagou a segunda mulher, que, até o momento, apenas observava.
— Em breve, Estherine — disse a líder do ritual e virou-se completamente para a irmã. — Está chegando o momento. Devemos nos preparar.
— E como faremos isso? — a mais nova voltou a questionar.
— Haverá um sinal, a profecia diz que ela chegará com o fogo.
— O ciclo do Sol — Estherine deduziu. — Começa em quatro dias.
A garota inquieta remexeu-se sem sair do lugar, a aflição começara a tomar conta de seu interior e ela não conseguiu esconder como estava incomodada.
— Algum problema, Agnara? — Os olhos da tia mais velha eram incisivos, pareciam perfurar sua alma e arrancar-lhe a essência.
— Nenhum — a jovem gaguejou. — Só estou um pouco... ansiosa. A senhora sabe, por saber se ela já nos conhece — disfarçou.
— Isso só saberemos quando chegar a hora — respondeu Bellet, voltando a olhar para o líquido.
Agnara soltou o ar devagar, com alívio, percebendo que a tia acreditara em suas palavras ditas sem muita certeza.
— Ouviram isso? — Estherine ergueu o indicador e esticou o pescoço.
Eram passos cuidadosos os que amassavam as folhas. Não muitos, cerca de quatro pessoas.
As três juntaram os seus pertences, os tecidos e as facas usadas para o sacrifício; depois deixaram o local em corrida, tropeçando nos próprios pés. Se fossem descobertas, seriam lançadas ao precipício sem chance de defesa.
— O livro... — disse a mais jovem, olhando para trás, enquanto os pés iam diminuindo a velocidade gradativamente. — Ficou lá.
— Não podemos voltar, Agnara — exprimiu Bellet, puxando a sobrinha pelo braço.
— Mas não podemos deixá-lo! — A garota tomou o controle do próprio corpo em um solavanco e correu na direção contrária, de onde partiram.
— Agnara! — Estherine bramou, mesmo sabendo que talvez fosse ouvida.
Os pés da moça moviam-se como duas lebres afoitas, se não tentasse, não saberia se teria dado certo. Mesmo com o peito apertado e uma força de temor invisível que a impulsionava para trás, Agnara continuou chutando folhas e transpassando galhos. A face avermelhada pela corrida era tela para os rabiscos de suor que brotavam das raízes de seus cabelos claros. Os braços pintados por algumas picadas de inseto sacudiam acompanhando o subir e descer do corpo magro, coberto por um tecido cor de terra, que escondia boa parte do seu tronco e das pernas, feito cipós entrelaçando-se na pele quase que amarelada, beirando o tom da areia litorânea. Ela estava perto do lugar onde o ritual acontecera, podia sentir ainda o aroma das velas acesas, abandonadas na fuga.
O par de esmeraldas cintilantes puderam contemplar os objetos deixados, inclusive o amontoado de folhas antigas com as bordas queimadas, presas por uma espécie de corrente de ferro. Ela esticou os braços, mesmo com a distância. Fora um gesto instintivo que dava a ela um impulso ainda maior, todavia, um impacto súbito foi sentido do lado direito de sua estrutura óssea. Uma força exercida de forma tão rude que não houve outra reação: Agnara previu os movimentos que viriam a seguir, mas não teve tempo de se esquivar, apenas levou o braço à frente do corpo. As pernas se desestabilizaram, ao embaterem no solo, foi possível ouvir o som da diastrofia, seguido de um gemido alto.
— Esperem! — pediu o homem que tentara segurá-la, causando sua queda.
O restante observou a alguns passos de distância.Ela mantinha as mãos sobre o tornozelo, afastando as vestes para conseguir comprimir o local com mais força.
— O que estava fazendo? — ele questionou. — Isso é seu? — Apontou para os cadáveres e para a mistura circundada de velas acesas.
Mesmo com a dor constante, Agnara murmurou de maneira que ele pudesse entender:
— Não... Eu as vi — mentiu.
— E para onde foram? — perguntou o rapaz.
Ele acreditara no que ela havia dito. Uma garota daquela idade, em sua percepção, ainda não saberia como usar todos aqueles objetos para um rito. A moça olhou de soslaio para o lado esquerdo, precisava saber de onde eles estavam vindo, para assim apontar o caminho contrário. Tinha de ser uma enganação bem feita para que os tais acreditassem.
— Para lá. — Apontou para frente, contraindo a face pela dor e, de certa forma, pelo desespero e o medo de serem descobertas.
— Vão — o homem ordenou. — Irei levá-la à casa de Maat para cuidar do ferimento.
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Lúrido Veneno - A ilha profana
HorrorUma ilha perdida, esquecida, uma verdadeira lenda. Não para os seus poucos habitantes. Em meio a acontecimentos completamente inexplicáveis, surge uma profecia antiga. Segundo ela, a filha do mal não tardará a chegar, e todos padecerão sob os seus p...