No domingo de manhã, a apenas quatro quadras de distância de onde Cecília estava começando a pegar no sono, com o sol encoberto por nuvens já no céu, Bernardo procurou entre a pilha de discos que ficava no chão, o CD Dirt de Alice in Chains, e o colocou no aparelho de som.
Deitou na cama, ouvindo os primeiros acordes, buscando alguma inspiração para uma nova composição de sua autoria. O incomodava a falta músicas autorais de sua banda. Não via possibilidades de irem para frente se eles ficassem fadados a tocar covers para sempre.
Virou de bruços e passou a mão embaixo da cama em busca de seu caderno de músicas. Abriu, e folheou as páginas, vendo anotações antigas, ilustrações, deixando que seu pensamento vagasse sem um objetivo definido. "O melhor amigo é um espelho", a frase estava anotada com uma caneta roxa com a letra de Cecília. Seguida por um "obrigado por ser meu melhor amigo e meu amor, amo você".
"Não, não vou ligar para ela, se ela que terminou comigo", pensou, fechando o caderno com um muxoxo. Tinha muito mais no que pensar e fazer.
Na sexta, quando ela foi embora, encarou a situação apenas como mais um término deles, de tantos outros que já haviam acontecido. Em geral, Cecília, ligava de volta no outro dia, ou aparecia em alguma festa em que ele estivesse tocando, de surpresa, como que por acaso, sempre disposta a conversar e resolver o que quer tivesse ficado mal-entendido entre os dois. Daí, faziam as pazes e a relação retomava de onde havia parado, apenas com uma cicatriz a mais para desaparecer com o tempo. Apenas um detalhe novo, que poderia vir à tona, ou não, numa discussão futura.
Levantou e foi ao banheiro. Foi interpelado por sua irmã mais velha, quando cruzava a sala.
- Cecília está aí? – Levantou os olhos para perguntar, enquanto fazia as unhas dos pés, sentada no sofá da sala.
- Não, terminei. – Disse lacônico.
Cláudia riu alto, como se dissesse "de novo" e quando Bernardo já estava fechando a porta do banheiro, ouviu ela gritar: "liga para ela". Enquanto mijava, pensou no que falaria, se ligasse. Lavou as mãos, e na volta para o quarto, olhou para sua irmã e disse "tá", pegando o telefone cinza do gancho, sacudindo alto mostrando Cláudia. Seguiu até o quarto. Jogou o aparelho sobre a cama. Em cima da mesa havia um maço de cigarro, tirou um do pacote e acendeu.
Tomado por uma vermelhidão raivosa no rosto, esfregou a mão com força pelos olhos e girou o volume da música para o máximo. Abriu o vidro da janela para deixar a fumaça sair, sentou no parapeito e ficou ali fumando e esvaziando os pensamentos até o cigarro terminar. Atirou a guimba no chão lá fora e se jogou novamente de costas na cama.
Levantou, outra vez, inquieto e andou até a cadeira em que estava a calça suja que usara no show de sexta-feira, o tal dia do término.
Colocou a mão dentro do bolso esquerdo procurando por algo. Não encontrando nada, afundou os dedos no outro bolso, e achou lá dentro, junto com umas notas amassadas de dinheiro e um isqueiro, um guardanapo amassado com um número de telefone. Voltou para a cama carregando o guardanapo em uma das mãos.
Pegou o telefone, ponderando sobre qual voz dentro da sua cabeça deveria ouvir: a que dizia para manter o seu orgulho e esperar por Cecília, "era evidente, que ela ia ligar, não havia motivo algum para preocupação". Ou a que dizia para pegar o telefone logo e chamá-la para uma conversa. Havia também coisas que não o agradavam na relação, mas muito além disso, havia a amizade deles, que fazia falta.
Se ele fosse mulher queria ser Cecília, e aí residia a maior demonstração de afeto e amor que ele julgava que poderia dar a ela. "Do que mais ela precisava?".
Pegou o aparelho e discou.
Na primeira chamada, desligou antes que o toque alcançasse a terceira vez e alguém pudesse atender. Na segunda, esperou tocar até ouvir a voz de alguém, esperando que fosse Cecília. Assim, ele saberia que ela estava em casa e imaginava que isso iria satisfazer sua curiosidade e necessidade de saber da vida dela nas últimas setenta e duas horas. Uma voz masculina atendeu. Desligou. Coçou o rosto novamente nervoso, e se sentou na beira da cama, com os dois pés no chão. Na terceira chamada, lá para o quinto toque, uma voz sem paciência respondeu "alô".
- E aí Miguel. Quero falar com Cecília. – Disse, fingindo uma segurança muito maior do que a que realmente sentia.
- Beleza. Vou chamar. – E fez-se o barulho do telefone sendo colocado sobre a mesa.
Bernardo, levantou e andou até o aparelho de som para abaixar o volume do disco. Pegou outro cigarro e rolou com ele por entre os dedos, nervoso. Os segundos estavam demorando muito mais tempo. Era extremamente difícil para ele admitir sua fragilidade, e temia que isso ganhasse corpo no som da sua voz.
Aos vinte e um anos tinha convicção que sua personalidade deveria ser condizente com o que as pessoas esperavam dele. Era um cara que chamava atenção não só pela sua aparência, mas pela segurança que tinha de se expressar, de levar a maior agitação uma pequena plateia que o assistia com sua música, de causar admiração por suas colocações e porque achava que era grande coisa estar quase toda sexta tocando no TicoTaco e em outras festas rock da cidade.
- Ela tá dormindo. – Disse Miguel, o telefone ainda fazendo o ruído de ser retirado da mesa e colocando de volta próximo ao rosto.
- Valeu, então. – Desligou.
O arrependimento veio de imediato. Resistiu a vontade que tinha de socar a porta. Sabia que Cecília logo saberia que ele havia ligado. Agora estava mais vulnerável do que nas horas anteriores que se sucediam ao término.
Voltou para cama, segurando o telefone e com o cigarro, que antes rolara entre os dedos, apagado, mas agora preso entre os lábios. Deitou e leu o número de telefone escrito no guardanapo. Discou e esperou que alguém atendesse, olhando distraidamente para o teto.
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Garota Azeda
Teen FictionGarota Azeda é a história de Cecília, que assim como você, já amou pela primeira vez e achou que essa pessoa era o melhor amigo que podia ter. Cecília é uma jovem mulher de 18 anos que está vivendo a adolescência nos anos 90. Antes dos smartphones...